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FILHOS DA MADRUGADA | O “Engraçador” da Praça

A esponja desliza, minuciosa e horizontalmente, as vezes que forem necessárias até que o brilho dos sapatos seja evidente. Depois, as mãos que os engraxam são lavadas com areia – sim, areia -, porque a fricção, entre os grãos e a pele, é o truque para remover os resquícios de gel negro. Todo o passante […]

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A esponja desliza, minuciosa e horizontalmente, as vezes que forem necessárias até que o brilho dos sapatos seja evidente. Depois, as mãos que os engraxam são lavadas com areia – sim, areia -, porque a fricção, entre os grãos e a pele, é o truque para remover os resquícios de gel negro.

Todo o passante que seja conimbricense de gema conhece este rosto. Mas nem todos sabem que ele se chama José Manuel, homem que dá graça à Praça da República de Coimbra, enquanto dá graxa aos sapatos dos outros, há 52 anos.

Os primeiros calos nos dedos, mazelas que a lide provoca, apareceram-lhe aos 13 anos. Afinal, nessa altura (1967), as máquinas que haviam eram ainda as nossas mãos e os dedos funcionavam como botões, recorda. O passar do tempo aveludou os calos e, hoje, o bigode no rosto materializa o tempo que passou e as rugas confirmam-no.

 

Depois de ser sapateiro, José teve um ofício similar ao de ardina, personagem com cadastro histórico, outrora responsável pela distribuição e venda de jornais. No caso, as mãos protagonistas desse perfil, carregavam exemplares do Diário de Coimbra. Mas, apesar do encerramento da loja de sapateiros onde começou, e fiel à estima e devoção pelo retratamento e recriação de calçado, José ansiou por erguer uma barraquinha, anseio que acabou por se concretizar, já lá vai quase meio século. 

 

 

 

 

Elucide-se a história da profissão. É no século XIX, por volta de 1806, que se situa o nascimento do engraxador com o momento em que um operário poliu as botas de um general francês como manifestação de apreço sentido. Em troca, o operário foi recompensado com uma moeda de ouro. Setenta anos depois, imigrantes italianos encarrilharam um nomadismo pelas ruas de São Paulo, Brasil, carregados com uma caixa de madeira e artilharia destinada ao polimento de sapatos.

 

Em 1890, Morris N. Kohn criou a cadeira de engraxador, invenção que suscitou um aprioramento da profissão. Como derivantes do ofício, durante a Segunda Guerra Mundial, apareceram os sciusciàs, miúdos que lustravam as botas dos militares ao mesmo tempo que tentavam vender jornais, chicletes e doces como garante de alguma subsistência.

Contei a José que, no ano passado, o engraxador algarvio Carlos Nunes (46 anos) percorreu Portugal de Sul a Norte para consciencializar acerca da extinção da profissão e reivindicar a criação do Dia Nacional do Engraxador (à semelhança do Brasil, que o celebra a 27 de Abril). O engraxador da Praça espreme a memória e confere que, realmente, outrora assistia-se à concorrência entre os engraxadores ao longo da Baixa de Coimbra. Éramos uns 7, no mínimo. E hoje? Há modernices que, como vernizes, por permitirem resultados mais instantâneos, seduzem mais os importados com o estado do que levam nos pés. 

José confessa: já não há nem metade dos jovens que antes cá vinham, e muito menos os que se queiram ocupar com este ofício. Contudo, os sintomas de decadência não o impedem de manter o fascínio pelo que faz, por isso, às 8h de todos os dias em que não chove, sai de Santa Clara rumo ao coração da cidade. Por 2€ engraxa os sapatos dos que confiam na graxa para consolar o anseio de imponência, dos que cedem ao capricho da vaidade ou presunção e dos que, simplesmente, o fazem por rotina. Médicos, advogados e professores são alguns dos habituais. Feitas as contas, são em média 10€ arrecadado até fechar a barraca ao fim da tarde.

 

No ano passado, José apanhou um susto, quando fraturou a clavícula. Pensei que nunca mais voltasse à Praça e à minha gente, diz. No decorrer dessa indagação, atinge-lhe uma dúvida existencial mais profunda, aquela que se relaciona com a noção da finitude, essa lei imutável – o que é que vão fazer à minha barraca quando eu me for de vez? Engoli em seco, por não lhe conseguir dar resposta concreta à abstrata pergunta.

 

Encostado às paredes da barraca, há um envelope amarelado pelo tempo. O recordar do momento de internamento e recuperação foi ilustrado com as fotografias nesse envelope, e José diz: Numa enciclopédia de um primo enfermeiro, aprendi umas coisas sobre veias. Mal tenho a quarta classe concluída, mas não preciso de mais escola para poder dizer que há uma Veia que comanda tudo: a força de vontade. Não só foi essa veia que alavancou a regeneração física de José, como também é alicerçado nela que continua a exercer a profissão e a ser presença assídua na Praça da República.

 

Ora viva, como vai? foi o cumprimento retribuído a 10 passantes durante as duas horas de conversa. Mas o senhor José, enquanto único protagonista de uma profissão decadente, é património imaterial do imaginário coimbrão. Por isso, e respondendo ao cumprimento: sim, ele continuará vivo. E não irá.

 

Texto e fotos: Ana Rita Rodrigues,
autora do blogue Ininterruptor

 

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