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FILHOS DA MADRUGADA | O “jornaleiro” da Portagem

Acordar com o reflexo quase involuntário de ligar a net no telemóvel e, consequentemente, ouvir o som da notificação que anuncia um acontecimento que determinado jornal noticia. Outrora, a esta rotina corresponderia ir a um quiosque, pouco depois da madrugada, para comprar o jornal do dia, da semana ou do mês, que se lia enquanto […]

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Acordar com o reflexo quase involuntário de ligar a net no telemóvel e, consequentemente, ouvir o som da notificação que anuncia um acontecimento que determinado jornal noticia. Outrora, a esta rotina corresponderia ir a um quiosque, pouco depois da madrugada, para comprar o jornal do dia, da semana ou do mês, que se lia enquanto se bebia o primeiro café do dia. Quase de certeza, tanto o som das notificações como a ida ao quiosque, embora seja a segunda diminuta, não são um cenário inusitado mas presente no quotidiano. Ainda com maior certeza, são um hábito irreflectido: no qual não se pensa nem se reflecte, precisamente por ser um ritual do quotidiano e, portanto, mecanicista e naturalizado. Por mais paradoxal que aparente, nenhum dos rituais que integram o quotidiano é inócuo. Por detrás deles esconde-se História. Ou uma história. Ou ambas.

E se vos disser que o quiosque é um ícone centenário e que, em Portugal, existe há mais de 150 anos?

O truque para despir aquilo que aparenta ser inócuo passa por desenvolver uma sensibilidade através da qual se retroceda no tempo para conhecer a origem desses rituais quotidianos. Façamo-lo com a História dos quiosques cruzando-a com a história de António de Sousa, 58 anos, funcionário do Quiosque do Largo da Portagem há 38. Durante parte desses 38, é repartindo os horários com o filho e a esposa que, ao longo de cada dia útil (e sábados de manhã) dá conta do recado entre as 7h e as 19h15. Ainda António não existia e já o pai vendia os jornais com a saca às costas, expressão que, na prática, descreve o pé descalço e calção roto, imagem desse garoto a quem chamamos ardina; que em voz cantante apregoa, pelas ruas de Lisboa, a Imprensa matutina, nas palavras do poeta Euclides Cavaco. A profissão de ardina foi inicialmente liderada por crianças que se deslocavam às Secções de Vendas das redações para adquirir os jornais, a crédito ou pronto pagamento e daí regressavam à rua, onde apelavam ao consumo dos jornais, ao apregoar a manchete do dia. Em meados do século XX, os jornais começaram a ser vendidos em locais fixos como bancas, papelarias e quiosques, metamorfose que levou à extinção dos ardinas.

Ao romper da madrugada, de jornais cheia e pesada / ao ombro põe a sacola / num lesto desembaraço / Sem ter tempo nem Espaço para os livros da escola.

É de forma algo romântica que estes versos de Euclides ilustram a figura do ardina. Por essa razão, é também leviana essa ilustração. É que a razão de não haver livros da escola dentro da sacola é bem mais profunda do que o facto de não haver tempo nem espaço: era a condição financeira que forçava os ardinas a ir para a rua, sendo a informação o seu único sustento que, por sua vez, vertia para o aglomerado familiar.

Após a extinção do ardina e o 25 de Abril (data que, aliás, como se verá adiante, marcou o início da democratização do espaço público e, como efeito, do regresso da funcionalidade dos quiosques), foi nas Escadas do Gato que a família Sousa deu continuidade ao negócio de jornais. Anos depois, embutiu-se o actual Quiosque, no Largo da Portagem, onde, há 24 anos, as filas dos clientes contribuem para a massa social que faz deste Largo um dos centros sociais da cidade. 

A questão da socialização é, aliás, uma característica que impera na história e na epistemologia do quiosque. À ideia de socialização e de vida pública acrescem…nádegas. Sim, nádegas. Escreveu Baltazar Caeiro, na obra Quiosques de Lisboa (1987, ed. Distri), que o termo quiosque vem do francês kiosque que, por sua vez, derivou do persa koushk e do turco kiouhk que, para além de pavilhão de jardim, significa nádega e terá que ver com a posição dos clientes ao se inclinarem no balcão.

Entre os séculos XIX e XX, havia cerca de 100 quiosques em Lisboa, fazendo da capital o epicentro destas estruturas ornamentadas com balcões e traço arquitetónico típico da Art Nouveau do final de 1800 e início de 1900, misturados com pós de arte bizantina. O primeiro quiosque, inaugurado há mais de um século, chamava-se The Elegant, nome que, entretanto, foi popularmente adaptado para La Bóia ou A Boia, enquanto metáfora que descreveria o resgate dos trabalhadores através de uma bebida fresca. 

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Do culto do café ao intelectual

 

É de longa data a associação entre a cultura do café e a cultura do intelecto: já nos séculos XVII e XVIII, os salões literários franceses configuravam espaços frequentados pelas elites mais eruditas de França, que aí se reuniam para debater questões relativas a eventos correntes, a filosofia e a literatura. Essas reuniões migram para os cafés, nos quais tomar café servia apenas de alegação ou pretexto para a discussão sobre os temas que marcavam a agenda pública. Os quiosques também acabam por assumir esta função de ponto de encontro para o debate: apesar de inicialmente frequentados por operários e pela pequena burguesia, rapidamente se alastraram aos artistas, à elite e intelectual e à comunidade estudantil. Assim, os quiosques assumiam-se enquanto local de encontro social, localizados nas praças por onde se intersectavam as veias tanto urbanas, como humanas.

Por esta razão, a chegada de Salazar ao poder, na década de 1930, veio a desencorajar a cultura do café: afinal de contas, o debate camuflado pelo café, ainda que sendo pilar da vida pública, seria entendido enquanto ameaça à consistência e integridade dos valores-sustentáculo do Estado Novo. Pelo contrário, esperava-se que os portuguesesses ficassem fora dessa vida pública, trocando-a pelo ambiente doméstico. A canção Casa Portuguesa, êxito de Amália Rodrigues, é um exemplo de património imaterial que exorta essa ideia de como seria bonito e preferível que um português fosse humilde e pobre, ficasse em casa e não esperasse nem exigisse muito para além dessa condição passiva, imbuída no povo lusitano.

O desentupimento cultural e o combate aos resquícios deixados pelo Estado Novo ganharam fôlego não só com a Revolução de 1974, como também com a adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia, em 1985. Porém, na lista de projetos e esforços de restruturação da vida social não entraram os quiosques, cenário do qual decorreu o fecho ou o abandono de muitas destas estruturas. 

Da pequena personagem, ficou do tempo a imagem, que perdura em cada esquina, como um retalho de fado, desse palco onde deu brado, a voz do pequeno ardina.

Serviu esta conversa com o Sr. António e a sua partilha para perpetuar no tempo a imagem – tanto do ardina, como do quiosque; para que a memória desses tempos não morra nos actuais, os quais, graças ao progresso tecnológico e aos novo paradigma do Ciberjornalismo. 

Um paradigma que, não obstante às vantagens conferidas ao Jornalismo, são também responsáveis por acelerar a ameaça ao formato clássico do papel e, consequentemente, por comprometer a manutenção de ofícios e profissões associadas à sua venda.

O próprio António o elucida, ao confessar: Não sei se com o andamento que isto está a levar daqui a uns anos imprensa escrita ainda vai existir. Lembro-me perfeitamente que, há 10 anos, recebia 30 exemplares de cada jornal; há 20 anos cerca de 50/60 e agora recebo uns 10, diariamente. A faixa etária mais consumidora situa-se entre os 45 e os 50 anos e mesmo as pessoas com mais idade vão desaparecendo, e os jovens compram muito menos, porque são seduzidos pela internet. Mas acrescenta: Não há nada como ter o papel nas mãos! Como sentir o cheiro do jornal! 

Não se trata apenas de perpetuar a bibliosmia através dos jornais em papel, isto é, o acto ou o gosto de cheirar o interior dos livros. Trata-se, sim, da atitude mais desafiante que é perpetuar o Jornalismo através do papel. É que tanto o quiosque como os reparos do Sr. António são sintomas daquela que é uma das maiores discussões contemporâneas sobre Jornalismo e à qual, sem querer, o Sr. António lançou uma faúlha e uma acendalha: não estaremos perante o cenário em que a extinção dos jornais impressos, para além de significar a extinção dos quiosques, significa também a extinção do próprio Jornalismo? Serão jornais e quiosques, dentro de décadas, artefactos convertidos em aplicações no ecrã do telemóvel a partir das quais se consegue acesso aos ciberjornais?

Se o impresso continua a ser a principal fonte de receitas do Jornalismo em geral (refira-se, por exemplo, o New York Times enquanto exemplo em que as receitas provenientes do número de assinaturas digitais excederam as receitas oriundas do impresso), o que acontecerá ao Jornalismo quando o impresso sucumbir?

Por fim, repare-se na confluência entre o nome do largo onde se embutiu este quiosque coimbrã e os próprios jornais: afinal de contas, não serão tanto as aplicações no telemóvel, como os quase rudimentares e defuntos jornais em papel portagens metafísicas que nos permitem espreitar e viajar no mundo e passar fronteiras do conhecimento? Atira o Sr. António: Comprem jornais; leiam jornais. Leiam a imprensa escrita porque, pelo menos eu, é a eles que recorro quando me quero informar sobre questões da actualidade. Eu também vou à Internet e leio notícias digitais, mas lê-las no impresso é qualquer coisa de diferente – e para melhor, muito melhor! É diferente ter uma notícia desenvolvida, na mão, de ter um parágrafo, no ecrã. 

 

Texto e fotos: Ana Rita Rodrigues, autora do blogue Ininterruptor

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