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COM PAPAS NA LÍNGUA | Miranda do Corvo

Mesmo colado ao belíssimo Parque Biológico da Serra da Lousã, conhecemos o restaurante Museu da Chanfana, que presta homenagem à iguaria rainha da terra que lhe reclama a origem. Foi lá que almoçámos com Miguel Baptista, Presidente da Câmara de Miranda do Corvo, a propósito da Região Europeia da Gastronomia. Miguel Baptista é natural de Fraldeu, […]

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Mesmo colado ao belíssimo Parque Biológico da Serra da Lousã, conhecemos o restaurante Museu da Chanfana, que presta homenagem à iguaria rainha da terra que lhe reclama a origem. Foi lá que almoçámos com Miguel Baptista, Presidente da Câmara de Miranda do Corvo, a propósito da Região Europeia da Gastronomia.

Miguel Baptista é natural de Fraldeu, em Miranda do Corvo. Licenciado e doutorado em Engenharia Civil, fez pós-graduação em Infraestruturas Viárias e Transportes em Meio Urbano e também se especializou em Urbanismo, Ordenamento do Território e Transportes. Ensina no Instituto Superior Politécnico de Viseu e é Presidente da autarquia desde 2013.

ENTRADAS

Pão, Queijo e Azeitonas

Este restaurante tem a particularidade de ficar junto ao Parque Biológico da Serra da Lousã, onde se reúnem todas as etapas do Ciclo da Cabra, desde o nascimento até ao aproveitamento gastronómico.

Miguel Baptista É um dos dois restaurantes de Miranda do Corvo aderentes do Programa Seleção Gastronomia e Vinhos [parceria estratégica entre a Comunidade Intermunicipal (CIM) Região de Coimbra, a Entidade Regional de Turismo do Centro de Portugal, Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal e Instituto de Emprego e Formação Profissional].

É um restaurante com boa qualidade de serviço e tem o nosso prato típico, que é a Chanfana, de resto servida com grande qualidade também nos restantes restaurantes do concelho. Miranda do Corvo é um desafio para quem aprecia a gastronomia e a natureza. O Parque, aqui ao lado, é um espaço de visitação muito conhecido, também a Quinta da Paiva e temos muitos outros desde a nossa Serra da Lousã, Gondramaz, que é uma Aldeia do Xisto, e Semide, com o seu mosteiro. Sendo o recurso primeiro as pessoas, é um concelho de afectos, onde se sabe receber e essa é uma imagem que quem visita leva daqui. Algo que aliás nos caracteriza a todos, portugueses, de norte a sul.

Este território, Região Centro, acabou dinamizado pela pandemia.

MB Não tenha dúvidas sobre isso. Penso que há sinais muito evidentes de que agora vamos ter não um êxodo rural, que penalizou muito o país, mas o fenómeno inverso: um êxodo urbano. A questão do teletrabalho, que se está a afirmar em vários setores, das empresas à própria administração pública. Estão a ser criadas condições, infraestruturas, para que as pessoas possam estar a viver e trabalhar em qualquer ponto do território. Podemos ter um reequilíbrio do nosso território, a pandemia veio acelerar-nos esse processo.

Quem visita a região, procura tradição?

MB Sem dúvida. Os portugueses passaram a visitar mais o seu território, a conhecer o património que temos. Já no ano passado isso foi bem visível, na época alta possível, dentro das condicionantes da pandemia. Houve um aumento muito significativo dos visitantes nos territórios do Interior e Miranda do Corvo também foi exemplo disso, com uma taxa de ocupação muito elevada. Este ano, embora exista alguma preocupação ainda, há sinais de que o verão vai voltar a correr bem, em termos de turismo. As pessoas olham para estes territórios como territórios onde se sentem mais felizes e mais seguros. Para ser feliz não é só ser livre e ter saúde, é sentir-se seguro. Esse sentimento e o contacto com a natureza condicionam cada vez mais a decisão das pessoas, não só em termos de lazer mas de habitação mesmo. O Interior tem tudo, tem todos os equipamentos culturais, desportivos, bons acessos e começam – embora tardiamente – a criar-se as condições de telecomunicações.

Têm esse objectivo, de captar novos residentes?

MB Sim, jovens sobretudo. Estamos a perder população, é um problema nacional e deve ser a principal preocupação do país. Vamos abrir aqui um espaço de coworking e teletrabalho, portanto trabalho partilhado e à distância, que estamos em crer que vai ser um sucesso.

E o que distingue Miranda do Corvo?

MB Temos bons acessos, estamos a meio caminho entre o Interior e o Litoral. Vamos ter uma excelente ligação à cidade através do sistema de Mobilidade do Mondego, que está a avançar, e isso associado a todos os equipamentos que temos para as pessoas. Depois o território, todo o património e recursos que temos.

VINHO

Rabarrabos, Fundação ADFP – Assistência, Desenvolvimento e Formação Profissional

O vinho que vamos beber é da Fundação ADFP, uma IPSS sem fins lucrativos com 30 anos de experiência no apoio social, cujo lema é investir com bondade em pessoas, na lógica de integração dos diferentes grupos sociais, no convívio intergerações e na igualdade de género.

MB Exatamente. Este vinho foi lançado recentemente e já foi premiado.

PRIMEIRO PRATO

Sopa de Casamento

Esta sopa é uma das tradições gastronómicas locais.

MB É uma sopa com pão, couves e o molho da Chanfana, ou seja, recorre às sobras do nosso prato tradicional. Por norma, era tradição sempre que havia eventos e momentos de afetos, como casamentos, ela surgir no início da refeição. Normalmente é confecionada numa caçoila maior.

Que memórias lhe desperta?

MB Muitas memórias, do tempo em que os senhores do talhos iam às aldeias levar as cabras, que o matadouro era na própria aldeia, algo que hoje é impensável com as regras que temos. Isto há 40 ou 30 anos. Quando havia festa na aldeia, havia quem comprasse uma cabra, ou meia cabra, dependendo das possibilidades de cada agregado familiar. Recordo-me da vida no mundo rural. Os meus pais praticavam a agricultura, também tínhamos umas cabritas e umas ovelhas.

Chegou a fazer parte desse processo?

MB Claro que sim, claro que sim.  Na minha infância tive muito da atividade na agricultura. E na resina, ajudava o meu pai que era resineiro.

O que faz um resineiro?

MB É uma atividade que está a regressar, de recolha da resina do pinheiro bravo. É muito dura, trabalha-se quase o ano todo. O meu pai recolhia a resina em púcaros e levava para as fábricas. Já lá vai o tempo. Agora temos aqui uma experiência de regresso da resinagem, o problema é que não temos pinheiros, foram todos substituídos por eucaliptos. Mas boa parte da minha infância foi a ajudar gente, levava lenha para aquecerem as casas, dava de comer às galinhas, andava no mato. Tínhamos a cultura do milho, da batata, do feijão, legumes, etc.

SEGUNDO PRATO

Chanfana

Estamos na Capital e Berço da Chanfana. É apreciador, imagino?

MB Claro que sim, principalmente ao almoço, ao jantar é preciso ter cuidado. Temos os Negalhos também, feitos com as sobras.

Já sentiu alguma uma reação de estranheza em relação ao prato, por parte de quem não é de cá?

MB Não, geralmente presencio uma reação muito positiva. A Chanfana era essencialmente no tempo das festas, não era um prato que se confecionasse durante o ano. Havia momentos de grande interajuda, como as vindimas, a apanha da azeitona. Estamos numa zona de vinhos, aqui a região de Lamas, na zona de Sicó. Há um momento que me recordo que era de grande afeto que é o das «Descamisadas».

O que são as «Descamisadas»?

MB Hoje há muitas máquinas mas naquele tempo as famílias cultivavam o milho e, quando chegava a altura da colheita, em que se apanhava o milho, juntava-se tudo num monte e havia a cooperação e interajuda dos vizinhos. Primeiro era a de uma família, ao longo de vários dias, depois de outra, e por aí fora. O milho era debulhado o milho e depois seco, para obter a farinha para a broa. Lembro-me de a minha mãe cozer broa todas as semanas. Descamisar é tirar as folhas do milho e incluía o momento do «abraço», que era quando aparecia uma espiga de milho vermelha, num monte de milhares. A pessoa a quem calhava tinha de dar um abraço a todos os que estavam à volta. Ou um beijo, conforme fosse o caso. Nos jovens despertava alguma ansiedade, porque podia ser a oportunidade para dar um beijinho a alguma menina que gostassem. (risos) 

Miranda do Corvo uniu-se aos concelhos de Lousã, Penela e Vila Nova de Poiares para constituir o projeto Terras da Chanfana. Não há rivalidade?

MB Os municípios abraçaram-se, lá está. A rivalidade está esbatida. A história é o que é. A origem da Chanfana é o Mosteiro de Semide, é um prato efetivamente originário aqui do concelho, mas temos de, não esquecendo a história, potenciar e valorizar o produto gastronómico e a melhor forma de o fazer é estarmos juntos e ganharmos calo. Dou-lhe um exemplo: o leitão não é só bom na Mealhada. E com a Chanfana já é um pouco assim, está a ganhar projeção e força graças a esta união, este abraço que o território deu.

Segundo a lenda, até finais do séc. XIX, todos os agricultores e rendeiros eram obrigados ao pagamento dos foros e muitos pagavam com cabras e ovelhas mas como as freiras não tinham disponibilidade nem meios para manter um rebanho, decidiram cozinhar e conservar a carne, aproveitando o vinho que lhes era entregue pelos rendeiros, o louro que tinham na quinta, os alhos e outros ingredientes. A chanfana era guardada ao longo do ano nas caves frescas do mosteiro. Mas também há uma versão que defende que a receita tem a ver com as invasões francesas.

 

MB Diz-se que quando as tropas francesas andaram pela região da Lousã e de Miranda do Corvo, a população envenenou as águas para matar os franceses. Mas era preciso cozinhar a carne e, como a água estava envenenada, utilizou-se o vinho da região. A Chanfana é um prato confecionado num forno a lenha, bem quente e durante várias horas, depende se a carne for mais ou menos tenra e do vinho também. Há quem a guarde no frio mas, naquele tempo, guardava-se numa despensa porque ela tem um molho que se solidifica, com a gordura, e conserva a carne.

O que significa esta distinção da Região de Coimbra como Região Europeia da Gastronomia?

MB A união faz a força e esta iniciativa tem uma dimensão internacional. Acho que é uma aposta acertada e que valoriza o território, um pouco como a CIM está a fazer com a candidatura a Capital Europeia da Cultura. Está a abraçar Coimbra, enquanto sede de distrito da região, e acho que está a dar uma força importante. Seria diferente se Coimbra se candidatasse de forma isolada.

SOBREMESA

Nabada

Esta é uma das sobremesas tradicionais de Miranda do Corvo, juntamente com as Súplicas, e também é oriundo do Mosteiro de Santa Maria de Semide,

MB Sim, a nabada é um doce tipo compota, feita de nabos e açúcar. A preparação é longa e trabalhosa, é preciso preparar os nabos… Encontra-se pouco ainda mas estamos a retomar gradualmente, essa parte da doçaria.

Esta é uma das sobremesas tradicionais de Miranda do Corvo, juntamente com as Súplicas, e também é oriundo do Mosteiro de Santa Maria de Semide,

MB Sim, a nabada é um doce tipo compota, feita de nabos e açúcar. A preparação é longa e trabalhosa, é preciso preparar os nabos… Encontra-se pouco ainda mas estamos a retomar gradualmente, essa parte da doçaria.

Além do Parque Biológico, que outros atrativos tem o concelho?

MB Temos a Expo-Miranda, por ocasião do feriado municipal. Mas temos muitos outros, desde eventos organizados pelas Juntas de Freguesia ao Carnaval, as marchas populares, as festas das colectividades em Vila Nova, a Festa das Vindimas em Lamas, uma série de eventos ao longo do ano. Religiosas também como as festas em honra de S. Sebastião e Senhor dos Passos.

Também têm o desporto, em 2019 organizou-se o Abutres Trail World Championships.

MB Sim, temos a associação abútrica que tem feito um trabalho extraordinário ao longo de uma década e que culminou com a realização do campeonato. Estamos a falar de mais de 50 seleções a nível mundial, milhares de atletas. Nem tínhamos capacidade hoteleira para alojar todas as seleções, tivemos de fazer uma parceria com unidades hoteleiras de Coimbra. Ter um centro de alto rendimento de trail e ciclismo em Miranda do Corvo é um dos sonhos que temos para o concelho.

E o que me diz da Aldeia de Gondramaz?

MB Que vale a pena conhecer. À semelhança de outras aldeias do Xisto é difícil explicar por palavras mas eu diria que, visitar Gondramaz e a área envolvente, aquela floresta de árvores autóctones, desperta um sentimento mágico. As pessoas ficam maravilhadas e cheias de vontade de voltar. Tem muitos visitantes e pessoas que ficam, há muito alojamento local e turismo rural. Nós estamos a lançar um slogan que é: «Aqui sou feliz». Trata-se de comunicar a tal valorização territorial, vai de encontro com aquilo que estivemos aqui a dizer.

A questão dos saberes e sabores ainda passa muito pela família ou depende muito da restauração? As crianças e jovens de agora terão esse conhecimento no futuro?

MB Eu penso que não haverá perda de identidade. A restauração é fundamental para os visitantes, mas há outro tipo de visitantes, os amigos e a família, e esses são recebidos no seio das famílias. É uma questão de cooperação, de união do território. É fundamental a aposta na restauração mas também no seio das famílias, dos grupos de amigos e das coletividades. Também das confrarias, temos cinco em Miranda do Corvo: a Real Confraria da Cabra Velha, Confraria do Vinho de Lamas,  Confraria dos Amigos da Jeropiga de Moinhos e Arredores, Confraria dos Ungulados, Javali e Castanha e Real Confraria da Matança do Porco. Temos ainda a Academia da Chanfana, Negalhos, Sopa de Casamento e Delícias Conventuais de Semide e Rio de Vide.

Estamos a almoçar e a ouvir os galos e outras aves mesmo aqui ao lado.

MB Pois, lá na minha aldeia temos muitos animais. Fica entre Miranda e Penela, chama-se Fraldeu, e ouvimos galos de madrugada, há muita diversidade de aves, muita vida selvagem, desde lontras no rio aos javalis e veados. Nos rios que temos, não só em Miranda, os vales tinham as chamadas zonas de leito cheias de terrenos férteis, que eram cultivados. A natureza fez uma transformação ao longo destes 40, 50 anos, que é uma coisa notável. Deixou de se cultivar e começaram a desenvolver-se árvores autóctones, que em termos de incêndios por exemplo evitam que sejam muito afectadas, porque são mais húmidas. Também é imperdível assistir à brama dos veados na Serra da Lousã, conhecem?

Conte-nos o que é.

MB A brama dos veados acontece na época de acasalamento, de setembro a novembro, e é um espetáculo único. De noite, em caminhadas na serra e total silêncio, ficamos a ouvi-los a atrair as fêmeas para acasalar.

CIM – Região de Coimbra

Fotos: Mário Canelas

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