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Joana Corker: «Aquela Coimbra onde não se passa nada já não existe.»

Não gosta muito de falar. Sempre foi assim, desde miúda. A mãe chegou a levá-la ao médico, porque tinha a impressão de que ela devia ter algum problema. Parece que a estamos a ver, pequenina, a crescer com a voz abafada pelo som dos camiões que passam na antiga curva da casa amarela, junto à […]

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Não gosta muito de falar. Sempre foi assim, desde miúda. A mãe chegou a levá-la ao médico, porque tinha a impressão de que ela devia ter algum problema. Parece que a estamos a ver, pequenina, a crescer com a voz abafada pelo som dos camiões que passam na antiga curva da casa amarela, junto à Estrada Nacional n.º1, no enclave entre três bairros de Coimbra: o Brinca, a Relvinha e o Loreto. Lembro-me que era uma zona muito perigosa e barulhenta, por isso cresci sempre mais enfiada em casa.

O silêncio, afinal, era uma escolha. Era timidez, não gosto de falar, prefiro conversar a desenhar. E conversava. Principalmente com o pincel molhado nas paredes verdes da casa dos avós, onde ia lanchar e brincar com as galinhas, depois da escola. Davam-me café e pão de ló. O meu avô tinha um moinho antigo, de manivela, era tão bom! Como viver no campo dentro da cidade. Mas a infância de Joana Corker teve outras duas moradas: as garagens atrás de casa e o quintal da melhor amiga.

O apelido original vem do avô escocês. Só na adolescência é que a miúda tímida e pacata, que nunca queria dar trabalho, começou a frequentar o centro da cidade. Da Pedrulha para Eiras, de Eiras para os Olivais, a geografia ia mudando ao ritmo escolar mas também dos gostos e referências que ia bebendo do irmão e da irmã mais velhos. Ela desenhava. Muito bem, melhor do que eu; ficava fascinada e tentava imitar, mas muito mal. Ele gostava de música. Toca e canta, tem muito mais talento do que eu, mas não mostra. Seria a mais nova, a tímida, a acabar por pisar os palcos. Mas já lá vamos.

Joana sempre teve discos em casa. Não era de comprar roupa de marca e aos discos a mãe nunca dizia que não. E eram caros na altura. O primeiro que lhe oferecerem foi o single do Dartacão, a série favorita, mas o primeiro a fazê-la colar o nariz numa montra foi Chronic Town, dos REM. A minha primeira paixão musical. Tinha uns 7 ou 8 anos e passeava com a mãe na Baixa, quando a capa lhe chamou a atenção na antiga discoteca Almedina. Pensei: tenho de ter isto. E a mãe parou o Mini – a rua ainda era aberta ao trânsito – e Joana entrou timidamente na loja para pedir o vinil.

Do folhear e decorar as letras aos videoclipes na MTV, esse lado visual dos discos e CD esteve sempre muito presente. Se não estava sozinha na sala, em frente ao candeeiro espectacular com bolas metalizadas, onde se via reflectida e simulava um microfone, estava no quarto do irmão, forrado a posters dos The Smiths, a embriagar-se de outras influências. A segunda maior, apareceu uns anos mais tarde. Ricardo Jerónimo era colega de turma na Escola Secundária Avelar Brotero. Não foi amor à primeira vista mas foi amor para o resto da vida toda, o rapaz do grupo divertido e a rapariga das sapatilhas, que eventualmente passava por nariz empinado e anti-social. Mas, pelo contrário, gosto muito de estar com pessoas.

Foi numa pista de dança durante a viagem de finalistas, no Fontana Del Oro, um pub irlandês em Madrid, que tudo mudou. A música era tenebrosa mas foi ali que eu soube que havia alguma hipótese entre nós. Joana e Jerónimo não se separaram mais e em 2010 transformaram-se também em banda – Birds are Indie. Tinham 30 anos e a vida já andava pelo mundo da música, por outros motivos. Depois de fazer o curso na ARCA – Escola Profissional das Artes de Coimbra e já a trabalhar como designer, Joana aceitou o desafio da associação Lugar Comum para criar cartazes de concertos e imagens para o website. Eu disse: OK, fixe, gosto de música, gosto de ir a concertos, porque não? Acabou associada, e também Jerónimo, com vontade de agitar as águas de uma cidade que simplesmente tinha parado no calendário cultural do país.

Eu conheço as histórias de pessoal mais velho mas, infelizmente, não passei pelos concertos na Cave das Químicas e em Celas. Tempos áureos de uma certa boémia de Coimbra que deram lugar ao marasmo. Para veres um concerto de um artista que gostasses, tinhas de ir ao Porto ou a Lisboa. Lembro-me de termos conseguido uma data única dos The Dodos em Portugal e recebermos mensagens de pessoas de Lisboa indignadas, por terem de vir a Coimbra vê-los. Foi com muito gosto que ouvi esse tipo de crítica, porque tive a certeza de que estávamos a fazer a coisa certa. Foi nos bastidores dos concertos que Corker reparou que havia muitos artistas inseguros e a perceber que, se eles conseguiam, talvez ela também conseguisse.

O primeiro concerto dos Birds Are Indie foi em Évora. Só aceitei fazer porque era muito longe e ninguém ia ver. A plateia estava cheia e, lá no meio, 10 amigos fizeram uma surpresa. Entre eles estava Henrique Toscano, o futuro terceiro elemento da banda que, ao mesmo tempo que o país entrava em crise, ligava os microfones e pegava em pandeiretas, xilofones, sininhos e kazoos. O único instrumento que Joana tinha tido na vida, além da flauta obrigatória na escola, era um mini piano que viu na montra da mítica loja de brinquedos Joaninha, na Rua da Sofia. Acho que foi a única vez que fiz birra por querer alguma coisa. O processo de aprendizagem de instrumentos foi e é, até hoje, diferente do habitual. É visual, não é pelo ouvido. Eu decoro os movimentos. Não consigo estar a tocar e a olhar para o lado, é um processo muito físico e gestual.

A indie e a pop que mais ouve, cruzam-se com o rock de Jerónimo e o sucesso tem sido grande, mas progressivo. A pandemia abrandou os voos além fronteiras e em casa a música calou-se mas, curiosamente, os nervos de palco também. Para mim tocar em Coimbra era terrível, sempre com medo de errar. Será da idade. Cada fase da minha vida foi diferente, aos 20 era impossível estar numa banda; aos 30 já começas a ter uma perspectiva diferente e agora, aos 40, pensas: Que se lixe! Se correu mal correu, siga. 

Não foi só ela que mudou. Aquela Coimbra onde não se passa nada, já não existe há muito tempo. O problema é a construção de público. São sempre os mesmos e cada vez menos. Tenho a impressão de que as gerações mais novas não têm o hábito de ir ver espectáculos ao vivo. A coisa só resulta quando é um evento social, quando vais para seres visto lá e, tenho a impressão que isso vem dos festivais de música, que levaram à construção desse tipo de público. E com o aparecimento das redes sociais, dos telemóveis, o público modificou-se.

Mas pelo menos já não se fecham em grupos. O do grunge, o do punk, o do rock. Eu acho que nunca encaixei em nenhum. Agora, Corker nota que as gerações mais novas são todas muito iguais. Quando vejo uma rapariga a vestida de maneira diferente, penso: o que é que se está a passar? Voltei aos anos 90? Se antes era diferente por usar sapatilhas, agora, possivelmente, é por se deslocar de bicicleta. Apaixonei-me por elas em Berlim! No segundo dia a visitar a cidade pegámos em bicicletas e mudou completamente. Quando trabalhou em Aveiro, comprou uma dobrável e ia e vinha de Coimbra de comboio, todos os dias, com ela.

Geralmente, Joana nunca está satisfeita com aquilo que faz, mas confessa que está bem e que o futuro é continuar. Coimbra também. Só precisa de ter emprego, fixar as pessoas. Mais de metade dos meus amigos continuam fora de Coimbra e gostavam de voltar. Os Birds, provavelmente, mudarão um pouco de rota. Prevejo uma evolução para um som mais pesado. Quando gravamos as músicas são muito mais soft, mais polidas, e eu gosto delas mais sujas, com mais desacerto. Com arestas. Lá está ela a desenhar outra vez.

© Coimbra Out Loud
Fotografia: João Azevedo
Texto: Filipa Queiroz

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