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Espreitámos “A Bela América” que António Ferreira está a rodar em Coimbra

Acção!, grita António Ferreira, e a voz ecoa por todos os cantos da colina. Depois, o silêncio é quase enervante e a concentração é total. Estamos numa espécie de socalco relvado, na encosta junto à Couraça dos Apóstolos, à entrada de uma capela abandonada com uma grande vista sobre a parede de casas coloridas que compõem […]

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Acção!, grita António Ferreira, e a voz ecoa por todos os cantos da colina. Depois, o silêncio é quase enervante e a concentração é total. Estamos numa espécie de socalco relvado, na encosta junto à Couraça dos Apóstolos, à entrada de uma capela abandonada com uma grande vista sobre a parede de casas coloridas que compõem um dos melhores postais do centro da cidade de Coimbra.

É uma espécie de campo no meio da cidade, diz Ferreira sobre o lugar surpreendente onde encontrámos o plateau do novo filme do realizador conimbricense, A Bela América, com São José Correia, Estevão Antunes, Custódia Gallego e Carlos Areia.

Apesar de ser nova, são antigos e universais os problemas que dão mote à longa-metragem que é uma espécie de A Bela e o Monstro ao contrário, totalmente filmada em Coimbra. A tragicomédia aborda questões como as desigualdades sociais, a meritocracia e o que resulta do cruzamento de pessoas de mundos completamente diferentes.

Será que o tipo que nasce no prédio abandonado vai ter as mesmas oportunidades do que o que cresceu na classe média? Será que com a meritocracia podemos todos chegar ao mesmo lugar?, reflecte António Ferreira. Eu acho que não, acho que há o tal elevador social, com milhares em baixo, à espera, no rés-do-chão, e quando ele chega só entra um ou dois. O filme é sobre isso.

A Bela América

A antiguinha capela de Santo Agostinho é agora é uma casa pobre, degradada, com móveis, roupas e colchões queimados à entrada. Da porta, vemos sair uma família de rosto carregado e humilde, interpretada pelos actores Estevão Antunes, Carlos Areia e Custódia Gallego. Quem conheça o trabalho de António Ferreira sabe que as histórias de família e de amor são comuns em toda a sua obra. Mesmo no antecessor Pedro e Inês (2018), o filme português mais visto no ano em que foi lançado, o realizador além da família foca o lado mais humano e comum do monarca, por quem acabamos por sentir uma certa proximidade.

Em A Bela América, é de Estevão Antunes o papel do protagonista Lucas, um talentoso cozinheiro que se apaixona por uma ambiciosa estrela de televisão e candidata a presidente chamada América. Podia ter sido ontem mas o argumento foi escrito por António Ferreira e César Silva há 20 anos, logo a seguir ao lançamento da primeira longa-metragem do realizador, Esquece Tudo o Que Te Disse, em 2002.

Enquanto assistimos ao ensaio de uma das cenas mais emocionantes do filme (que não vamos contar), percebemos por que é que o actor principal foi escolhido de entre mais de uma centena de colegas, num longo casting feito em Lisboa por mais uma conimbricense, Eva Queiroz de Matos. O Estevão só com o olhar já está a dizer muita coisa; se um actor estiver a olhar, em silêncio, num ecrã de 20 metros de largura, nós estamos a ler-lhe os pensamentos, por isso geralmente uma coisa que faço é observar o actor calado, a olhar, para ver o que é que ele me transmite, conta António Ferreira. Eu procurava essa inocência e pureza para o Lucas.

São José Correia é América, que de inocência e pureza não tem nada. Bastou vê-la descer as escadas ao encontro do restante elenco, para lhe tirar a pinta. Isto é uma crítica social em forma de comédia negra, comenta a actriz, que não poupa elogios à equipa mas aponta o dedo ao Município de Coimbra no que toca ao apoio que sentiu à rodagem. Quanto à personagem, ressalva feita: Eu não tenho rigorosamente nada a ver com a América, não confio na classe política nem me movimento nesse circuito. Durante a rodagem, ouvimos uma personagem jornalista perguntar: As suas políticas são de esquerda ou de direita?, perante uma dezena de apoiantes fervorosos. Não são de esquerda nem de direita, responde a personagem e qualquer semelhança com a realidade não é, obviamente, mera coincidência.

O cinema é mais uma ferramenta para pensar a realidade, não é um filme que muda a vida de ninguém mas talvez muitos, aos poucos, vão mudando as consciências, afirma António Ferreira. E acrescenta: Não tenho qualquer ilusão de que é uma gota no oceano, é mais um filme no meio de milhares que se fazem todos os anos, que espero que ajudem, como aconteceu com o coreano Parasitas (2019), que é um filme até ligeiro, de comédia, como este que é divertido e tem ironia. A alegoria social do sul-coreano Bong Joon-ho arrecadou 4 Óscares da Academia e a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes, em 2020.

Coimbra cinematográfica

Foi Tiago Cravidão, outro realizador de Coimbra e assistente desta produção, que descobriu o cantinho da Alta de Coimbra onde foi criada a casa de Lucas, na pequena Capela de Santo Agostinho. Começámos por namorar uns edifícios antigos na Emídio Navarro mas depois surgiu esta ideia e fui adaptando a acção ao décor, revela António Ferreira sobre mais esta obra produzida na cidade natal, com uma equipa 90% local e, desta vez, apenas com um apoio automático do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA), relacionado com os resultados de Pedro e Inês, em 2018. A maior fatia de financiamento vem de fora do país.

Eu sou de Coimbra, por que é que eu hei-de ser obrigado a ir para Lisboa?, dispara. Eu sou um gajo extremamente teimoso, continuo sucessivamente a filmar aqui e entretanto foram-se formando técnicos. A produtora Persona Non Grata conta 20 anos de existência, com uma vasta lista de trabalho feito. No entanto, o realizador não deixa de lamentar a falta de apoio e sobretudo investimento na sétima arte, seja local seja nacionalmente.

« Portugal é um país extremamente desequilibrado, até nos apoios do covid às artes 70% foi para Lisboa e 70% da produção cultural não está em Lisboa. Há iniciativos fiscais para produções estrangeiras serem feitas em Portugal, fora da região da Lisboa, mas o que acontece é que vão com as equipas de Lisboa para o resto do país e depois contratar peões localmente, os assistentes dos assistentes, portanto continuamos na mesma. A ideia de desenvolver artisticamente o país de forma uniforme não está a acontecer. Os filmes podem ser políticos mas a maneira de fazermos filmes também. Faço questão de usar pessoas de Coimbra, que tem toda a competência, este é um filme totalmente exuberante, tecnicamente perfeito, feito com equipa essencialmente de Coimbra. »

Além de criar a Casa do Cinema de Coimbra, juntamente com outras entidades, o Festival Caminhos do Cinema Português está a promover o Programa Incentivar, com o objetivo de promover a produção cinematográfica na região Centro. O próprio festival é um acto de resistência, os apoios locais que têm são ridículos, sei que o fazem com pouco e muito amor à camisola há mais de 20 anos, comenta o realizador, que defende que é preciso parar de olhar para o artista como a pessoa que trabalha de graça. Se queremos ter cultura de qualidade as pessoas têm de se poder dedicar 100% a isso.

Um cenário que poderá mudar para o Caminhos, de acordo com declarações feitas pelo recentemente eleito presidente da Câmara de Coimbra, José Manuel Silva, que também assumiu o pelouro da cultura. Espero que isso seja um sinal de que ele vai dar uma importância à cultura que não foi dada até aqui, atira o realizador de Respirar (debaixo d’água) (2000), filme que o levou até ao Festival de Cannes e com a qual ganhou vários prémios em diversos festivais internacionais.

Na Casa da Esquina, foi recentemente apresentado um programa de formação de públicos para o cinema, Crianças em Ação, dirigido este ano a escolas do 1º Ciclo do Ensino Básico do Agrupamento de Escolas Coimbra Centro.

Tem de ser, senão o pessoal só consome a estética Netflix, do Tik Tok e da Internet, comenta António Ferreira, e acrescenta um rol de exemplos que Portugal poderia seguir. Na Dinamarca, que tem mais ou menos a nossa dimensão e um cinema pujante, parte dos dinheiros que têm vai para filmes dirigidos à infância. Vejam a Coreia, o que está a acontecer com o cinema coreano é o resultado de 20 anos de investimento, começaram a produzir muito e hoje em dia, mesmo com uma língua que ninguém fala, exportam a cultura do país para o mundo inteiro, menciona. O Brasil foi outro exemplo atirado pelo realizador, que dirige a Persona Non Grata Pictures há duas décadas com a produtora Tathiani Sacilotto, com sede em Portugal e no Brasil. Nomeadamente a lei de mecenato, que de acordo com o profissional prevê uma mistura de financiamento público e privado. Conseguiram saltar do nada para uma quota de mercado de 20%, em cerca de uma década. Em qualquer país ter um filme nacional é uma vantagem, em Portugal é uma desvantagem. 

A luz já começa a desvanecer, está frio, passaram quase 3 horas e já foram feitos vários takes e mudadas várias camisolas. Os actores repetem exactamente da mesma forma cada frase, com uma precisão impressionante. Este tipo de trabalho faz-se mais facilmente quando se faz com objectivos de ficar gratificado e quando te dá prazer, diz Custódia Gallego, que interpreta a mãe invisual do protagonista.

Estas personagens fazem parte da nossa sociedade, que precisa que haja uns muitos pobres para haver outros muito ricos. Carlos Areia, o par no plateau, também não esconde o entusiasmo. Gosto muito de cá estar, tem sido das melhores experiências da minha carreira. É o trabalho em cinema que faço com maior incidência, maior carga e maior responsabilidade, confessa o actor que trabalha pela primeira vez com António Ferreira, também tem uma peça em cena no teatro António Assunção, em Almada, e está a gravar uma telenovela. Gosto muito de Coimbra, aliás, quem não gosta? 

Mas gostos discutem-se. António Ferreira lamenta aquilo a que chama a política do gosto no ICA, que segundo o membro fundador da Academia Portuguesa de Cinema (APC) e da Associação de Produtores de Cinema e Audiovisual (APCA) diz que inviabiliza a produção de uns filmes em detrimento de outros.  aquilo que acham que deve ser o cinema português e não é assim que deve ser. Tem de ser uma coisa mais dinâmica. E acrescenta: O cinema português continua com um problema crónico de falta de espectadores, não vale a pena dourar a pílula. Temos 2 ou 3% por ano de quota de mercado e isso é trágico. Se o cinema é importante culturalmente para um país, e se se gasta dinheiro público no cinema, é para os portugueses irem ver.

Qual a solução? Se calhar tem de se produzir filmes que comuniquem mais com o público, é possível ter valor artístico e comunicar com o público à mesma, responde o realizador formado pela Escola Superior de Teatro e Cinema, em Lisboa, e a Academia de Cinema e Televisão de Berlim, vencedor de mais de 40 prémios internacionais em mais de uma centena de festivais de cinema nos cinco continentes.

António diz que a partir do momento em que começa a filmar, os problemas ficam para trás. A Bela América deve estrear depois do Verão de 2022. Tenho esperança que o público vá gostar e ver, estou a contar uma história que acho que é bonita, sobre uma pessoa comum com quem acho que nos podemos identificar e acho que é isso que leva as pessoas às salas. Quando chegas lá e de alguma forma o grande ecrã de cinema é um espelho do que vês lá fora ou de ti próprio, que te faz reflectir sobre o que tu és e onde vives, é esse o meu objectivo. 

Caiu a noite. Actores e técnicos aplaudem o final de mais um dia de rodagem e recolhem ao edifício antigo que se transformou em camarim, cozinha, escritório e armazém. The End.

Texto: Filipa Queiroz
Fotos: Tiago Cerveira

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