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A família está servida na Oficina Municipal do Teatro

Ouvem-se os copos e talheres a bater, passam as travessas e a conversa já pode começar. Nunca fui actor, imagino que se sintam muito nervosos quando estão num palco, mas acreditem que eu estava muito nervoso de vos estar a ver aqui hoje, arranca Jorge Figueira. Ao lado do espectador convidado está sentada a mulher, […]

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Ouvem-se os copos e talheres a bater, passam as travessas e a conversa já pode começar. Nunca fui actor, imagino que se sintam muito nervosos quando estão num palco, mas acreditem que eu estava muito nervoso de vos estar a ver aqui hoje, arranca Jorge Figueira. Ao lado do espectador convidado está sentada a mulher, Susana, os filhos, Eduardo, Miguel e Xavier, e os sogros, Teodomiro e Maria da Conceição.

A família acabou de assistir ao espectáculo Da família, na Oficina Municipal do Teatro (OMT), em Coimbra, e a redundância é propositada. Foram desafiados pelo Teatrão para ver, em primeira mão, a nova produção da companhia residente, que tem por base um livro de contos homónimo do escritor Valério Romão, e a seguir jantar e trocar impressões à mesa com o elenco e a equipa técnica do espectáculo.

Na mesa as pessoas não se sentem intimidadas, diz Isabel Craveiro. Muitas vezes pensam que vão fazer figura de burras ou que não sabem o que dizer perante a actividade artística, continua a directora artística do Teatrão, enquanto explica o que levou a companhia a organizar a original actividade paralela daquele que é, em si, um projecto de intervenção.

A mesa e a comida são coisas importantes para nós; podem haver conversas muito sérias à volta da mesa, discutem-se muitas vezes assuntos difíceis, atira Craveiro, também actriz. Conhecida pela relação estreita que tem com a comunidade, a companhia de teatro dá continuidade ao registo inclusivo e agregador que a caracteriza, ao mesmo tempo que a OMT se apresenta como uma casa. Porque no fundo é esse o desígnio de um espaço municipal, ele é das pessoas, nós só gerimos e ouvimos as pessoas.  

Vinho, água ou sumo?

Pedimos as bebidas e ainda é Jorge Figueira que tece alguns comentários ao espectáculo que o espectador confessa que lhe tocou particularmente. Curiosamente a terceira história já me pareceu uma coisa completamente diferente, diz. E com razão, porque a peça tem a sua dose de inusitado. Da família divide-se em duas partes, dois episódios, apresentados em dias distintos. A estrutura é fantástica, apesar de simultaneamente quotidiana, e são apresentadas as histórias de cinco casas e famílias numa espécie de condomínio à beira de um ataque de nervos.

O trabalho resulta de uma residência/laboratório que no ano passado juntou, presencialmente e à distância, a equipa artística do Teatrão e o autor de peças como OctólogoPosse e A Mala, tradutor de Virgínia Woolf e Samuel Becket. Discutiram, experimentaram e inventaram o que viria a ser a base para a adaptação para a dramaturgia de 5 dos 12 contos do livro Da família (Abysmo, 2014), onde se pretende reflectir sobre as transformações operadas na estrutura e dinâmica das famílias nas últimas décadas.

Por que é que há canções em inglês? Há partes em que se via os bastidores, é de propósito? E aquelas cenas dos miúdos, não estão um pouco exageradas? Pai, mãe, avô, avó e netos partilham opiniões mas sobretudo dúvidas e inquietações, despertadas pela peça. Do outro lado da sala, escutam atentos o encenador, Marco António Rodrigues, e os actores Hugo Inácio, João Santos, Pedro Lamas, Margarida Sousa e Sofia Coelho, bebendo cada resposta como goles de um bom vinho.

Odeio perguntar às pessoas o que é que acham do meu trabalho porque parece que estou à procura de aprovação, mas o facto de terem feito críticas animou a conversa, comenta o homem do leme deste trabalho, que aprofunda a narrativa que o Teatrão construiu para o quadriénio 2018-2021 e que parte da metáfora da Casa. A companhia trabalha em torno da ideia do habitar coletivo, que gerou a Casa Portuguesa – Eu Salazar e A Grande Emissão do Mundo Português;  a Casa do Poder – Richard’s e Ala de Criados; actualmente, a Casa Fora de Casa – De Portas Abertas, da família e, em setembro, chegam Os Cadáveres são bons para esconder Minas.

Prato principal

O jantar é uma de várias actividades satélite da nova produção do Teatrão, que também passam por um ciclo de conversas, em parceria com o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, e uma actividade de intervenção no espaço público – Fica em família, Conversas privadas em espaço público (2 e 3 de Dezembro).

Nunca tive oportunidade de ver muito teatro ao longo da vida, vivo numa vila, no Luso, e para ver teatro temos sempre de sair, partilha Teodomiro Pereira. A mulher, Maria da Conceição, admite que achou a peça um bocadinho longa, mas adianta que deixou de se preocupar com o que não entendia para se render ao trabalho perfeito a que acredita ter assistido. Acho que entendi o fundamental: são pessoas reais, que não fazem parte da nossa realidade talvez mas fazem parte da realidade de muitos lugares e acho que é muito bom chamar a atenção para isso. A ausência ensurdecedora de um filho expulso de casa, a morte de uma mãe, o alcoolismo, a diferença, a comunicação e a desinformação. Podíamos identificar-nos em alguns aspectos, de uma maneira ou de outra, reflecte Eduardo, 17 anos. 

Antigos alunos das classes de teatro da companhia, Eduardo e o irmão Miguel vivem com os pais no bairro da Arregaça, no centro de Coimbra. Curiosamente, ainda na terça-feira passada, ao jantar, estivemos a conversar sobre instituições de acolhimento de crianças em risco, tiradas às famílias, por causa de um caso que conhecemos, conta a mãe, Susana. Uma das filhas acabou por ser levada e isso emocionou-nos muito.

Segundo Isabel Craveiro, a partir dos contos a equipa conseguiu identificar algumas coisas que interessa a todos discutir, mas há muito pudor. Temos sempre esta ideia da felicidade e da harmonia, que as coisas só nos acontecem a nós e com os outros é tudo perfeito e maravilhoso e estas questões têm a ver com o tempo que vivemos, explica. Estamos a viver um momento de transformação entre dois mundos e muitas vezes achamos que não há saída para as coisas. Os problemas de superação, hoje em dia é muito mais difícil assumirmos o fracasso das coisas. A peça revela a disfuncionalidade da estrutura familiar como espelho da disfuncionalidade ou falência do sistema social. Nas cinco casas que mostram, os pais são todos Henriques, as mães são todas Martas, os filhos Rogérios, Antónios, Ritas e Raqueis e os cães Neros, com uma cenografia e figurinos de Filipa Malva admiráveis. As fendas na construção familiar são as de todos nós, os velhos a quem não conseguimos atender, os novos a quem não conseguimos educar, a paixão que não conseguimos manter, o futuro que não podemos vislumbrar.

Sobremesa

Apesar de falar de assuntos sérios, o espectáculo Da família está carregado de humor. A tensão está sempre presente mas o tom, a estética e o ritmo são inebriantes. Além do não conseguir resolver, não conseguir lidar ou não ter tempo, há esta questão de as famílias ficarem cada vez mais enclausuradas num espaço pequeno e essa também é uma metáfora de outra coisa: a de que nos fechamos sobre nós próprios. Tudo é inimigo, lá fora tudo é mau, atira Isabel Craveiro. A peça também desmonta a ideia do patriarcado. Pedro Lamas interpreta vários pais em cenas e admite que o grande desafio é o de tentar entender. O encenador, Marco António Rodrigues, complementa: a gente não está interessado na denúncia, mas no que está na raiz das coisas.

Estamos na sobremesa. A conversa flui naturalmente. Ir com a avózinha ou o avôzinho ao teatro, quem me dera!, diz Victor Torpedo, responsável pelos interlúdios e banda sonora que também ficam na memória, além de todo o outro espectáculo a acontecer nos bastidores, à vista de todos. As várias camadas do espectáculo por vezes confundem mas sem deixar de fascinar. A indagação continua. O teatro é um sítio para discutir as coisas, é um caminho para tentarmos discutir com o outro, uma assembleia, e aqui trabalhamos sempre com o público de uma forma muito activa, não só nos espectáculos, diz Isabel Craveiro, que em palco é pai de família, chefe da polícia e professora preocupada. Partilhar as angústias e discuti-las, não tentar dar respostas porque essas…cada um é que sabe como recebe as coisas. Mas pôr as questões, é fundamental.

Café

Esta foi a primeira parte, vem aí a segunda – não precisam de ajuda?, atira Jorge Figueira na hora da despedida. Talvez Isabel Craveiro tenha razão, talvez faltem sítios de partilha. As pessoas precisam muito de atenção, diz a directora artística, que também nos conta que o Teatrão tem praticamente tantas actividades previstas para 2022 como dias no calendário. Actividade que vai desde os espectáculos à formação, ao contacto com o público e o trabalho com companhias amadoras e IPSS.

Segundo Craveiro, o que move a companhia é a relação com a comunidade. Principalmente numa cidade como Coimbra, asfixiada entre dois mundos diferentes, a universidade e o resto, nota a directora artística, refere. Coimbra tem vários projectos e infra-estruturas para a actividade cultural, que nos permitem ter aquilo que as pessoas às vezes não gostam de assumir, que é uma cidade que tem muita oferta do ponto de vista do teatro, que devem valorizar, trabalhar, articular. Sinto muito esta falta de valorização das pessoas de Coimbra em relação a si próprias e à cidade. É preciso gostarmos um bocadinho mais e valorizar. Tem de se contrariar. 

Mas as pessoas também não têm culpa, continua. Tem a ver com o hábito, daí a preocupação de trabalhar com as escolas e os públicos que se sentem marginalizados porque as propostas não chegam lá. Sentirem que não nos esquecemos delas. Voltamos, ligamos, queremos saber.

Da família estreia dia 9 de Dezembro e fica em cena até 16 de Janeiro, na Oficina Municipal de Teatro, em Coimbra. O Episódio 1 às terças (19h), quintas (21h30) e Sábados (21h30) e o Episódio 2 às quartas (19h), sextas (21h30) e Domingos (17h). Há sessões com interpretação em linguagem gestual portuguesa e audiodescrição. A companhia espera que as atividades desenhadas possam ser desenvolvidas conforme planeadas, a evolução da pandemia da covid-19 ditará eventuais adaptações. Para já, existe a obrigatoriedade da máscara e apresentação de Certificado de Vacinação à entrada ou teste (disponibilizado no local gratuitamente).

Texto e fotos: Filipa Queiroz
Fotos do espectáculo: Carlos Gomes

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