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Opinião | Porque é que a comunidade não reclama mais vezes para si o que é seu?

Por Carlos Pinheiro

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Fotografia: Mário Canelas e Carlos Pinheiro

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Quando soube que a Guarda Inglesa iria estar fechada ao trânsito a partir das 20h de dia 18 de Maio (véspera do rally), não pude deixar de lá ir e tomar a estrada para mim. Sem surpresa, percebi que não era o único a preferir circular no meio da estrada, em vez de nos condicionarmos ao passeio como todos os dias. Mas porque é que todos sentimos isto? Porque é que sabe tão bem circular no meio da estrada?


Talvez sejam memórias que nos estimulam a vontade, por exemplo, as memórias que alguns têm de brincar no meio da rua com umas pedras a fazer de balizas ou uma macaca riscada com pedaços de tijolo. Talvez nos lembre alguma manifestação, onde tomámos a estrada num acto de reivindicação e que muitas vezes nos lavava a alma e nos fazia sentir parte da cidade. Talvez os cortejos festivos ou religiosos onde pudemos, com total liberdade desfilar no meio das vias e sentirmo-nos integrados na comunidade e na sua cultura. Talvez uma corrida onde pontualmente a cidade cede a sua infraestrutura para que possamos colectivamente superarmo-nos fisicamente.

Todas estas memórias são suficientes para nos despertar esse instinto, mas acho que é mais
profundo que isso. Acho que é pelo facto de estarmos condicionados ao passeio diariamente
ou fechados nas nossas bolhas motorizadas que nos sabe tão bem poder reconquistar um
espaço que já foi de todos e simboliza uma vida mais simples.
Quando a estrada deixa de ser estrada e passa a ser rua onde conseguimos circular a uma velocidade que nos permite conhecer as pessoas e os negócios, onde não estamos permanentemente com o radar ligado com medo dos carros, sentimos que algo está certo. E está certo porque a cidade já existia antes do automóvel e não só o nosso espaço teve que se encolher para receber o automóvel, como permitimos que o individualismo do automóvel se tenha imposto sobre o bom senso.



Todos nos queixamos das confusões à porta das escolas, porque todos os pais precisam deixar as suas crianças mesmo na entrada. Consideramos normal que um peão esteja em pé à chuva, à espera que o semáforo da passadeira passe para verde, enquanto o automobilista, que está seco e sentado, circule ignorando a condição do próximo. Não nos incomoda que seja necessário colocar lombas, pavimento e iluminação especial à porta das escolas apenas porque alguns preferem exercer o seu direito de se ausentarem da comunidade e não respeitarem o bem comum, circulando a 30 Km/h.

É fácil reconhecer que a qualidade de vida da nossa cidade piorou com o aumento do número de carros a circular e ainda que nem sempre consigamos perceber uma solução, já é importante reconhecer o problema.


De volta à Guarda Inglesa.

Estava uma noite agradável, a cheirar a noite de Verão e, como em tudo o que nos sabe bem mas que tem vida curta, perguntamo-nos logo porque é que isto não acontece mais vezes? Porque é que a cidade, a comunidade, não reclama mais vezes para si o que é seu? Porque é que a Avenida João das Regras não faz umas noites de Verão com jantaradas no meio da estrada, ou a Portagem uns arraiais de Santos Populares com mesas e bailarico no meio das faixas de rodagem. Por que não um campeonato de desenho de giz amador no alcatrão da Cruz de Celas ou uma gigantesca rua de brincadeira na Paulo Quintela com as crianças no meio da estrada…?

Habituámo-nos a ver o alcatrão como espaço que não é nosso, mas se virmos para além do carro e daquilo que ele não dos deixa ver descobrimos uma cidade melhor.


Novamente de volta à Guarda Inglesa.

Uma avenida no centro da cidade, com escolas, espaços desportivos, restaurantes, comércio, habitação e cultura, que tem em quase toda a sua extensão cinco faixas de rodagem e duas faixas de estacionamento, ou seja, pelo menos sete vias dedicadas ao transito rodoviário, nenhuma delas exclusiva aos transportes públicos, zero dedicadas a bicicletas, e nem o passeio é de qualidade apesar de ser uma zona relativamente nova. Tem, inclusive, uma passagem superior como se estivéssemos num espaço fora do perímetro urbano ou a passar por cima de uma linha do comboio.

O perfil da avenida foi desenhado a pensar no automóvel, no entanto, sabemos já há muito tempo, que um perfil que privilegia os transportes públicos e as bicicletas pode transportar dez vezes mais pessoas do que estradas cheias de automóveis privados. A solução, todos sabemos qual é, mesmo que não a queiramos para nós por comodidade ou negação: mais pessoas a circular de bicicleta ou transportes públicos significará menos carros a circular e, como tal, melhor qualidade de vida na nossa cidade. Porque é que a comunidade não reclama mais vezes para si o que é seu?

A cidade já existia antes do automóvel e não só o nosso espaço teve que se encolher para receber o automóvel, como permitimos que o individualismo do automóvel se tenha imposto sobre o bom senso.

E aí entramos todos, principalmente o poder local, que pode e deve promover a aproximação das pessoas às suas ruas, aos transportes públicos e às bicicletas através de políticas e decisões que muitas vezes podem parecer impopulares, mas que cada vez mais estão suportadas na evidência científica, como a criação de ciclovias contínuas e protegidas, dedicação de faixas exclusivas a transportes públicos, radares de controlo de velocidade, supressão de estacionamento nas zonas críticas como o Pólo 1 e o Hospital, etc.

Acabamos, não na Guarda Inglesa, porque, entretanto, a noite acabou, passou o rally e no dia seguinte voltava a fluir o trânsito como normalmente, e quem lá esteve sabe o tesouro que ali se esconde. Ali e por toda a cidade. Por isso, na próxima vez que cortarem uma estrada aproveite, leve as
crianças ou quem quiser e usufrua daquilo que é seu e que tantas vezes cede sem se aperceber
o que perde.
Habituámo-nos a ver o alcatrão como espaço que não é nosso, mas se virmos para além do carro e daquilo que ele não dos deixa ver descobrimos uma cidade, melhor.


Carlos Pinheiro é arquitecto urbanista e responsável pela página Coimbra Futuro Possível no Instagram.

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