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Por que é que devíamos todos saber quem são os salatinas de Coimbra?

Revisitamos as memórias, tradições e problemas da população que foi afastada da Alta de Coimbra na década de 40 do século passado, com as demolições de centenas de edifícios para cumprir a visão totalitária duma nova cidade universitária.

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Fotografia: Mário Canelas, livro «Coimbra Através dos Tempos»

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«Oh as casas as casas as casas

mudas testemunhas da vida 

elas morrem não só ao ser demolidas

Elas morrem com a morte das pessoas

(…)

Na casa nasci e hei-de morrer

na casa sofri convivi amei

na casa atravessei as estações

Respirei – ó vida simples problema de respiração

Oh as casas as casas as casas».

 

Excerto de poema de Ruy Belo



A Alta de Coimbra já foi outra, teve outros quarteirões, outras casas e ruas. Num impulso de rápida modernização, o Estado Novo pôs em marcha o plano para uma nova cidade universitária, o que implicou o derrube de casas, colégios e igrejas, a demolição de quarteirões inteiros a partir de Abril de 1943, obrigando à saída forçada de centenas de famílias, um historial de desenraizamento que importa contar, a história dos salatinas.

Os salatinas eram aqueles nascidos na Alta, sem distinção, comenta Ricardo Figueiredo, nascido na Alta em 1936. Alguns dos descendentes de salatinas reclamam também para si o nome. Eduardo Albuquerque, um dos historiadores responsáveis pela Cooperativa Rebobinar, esclarece que era um termo que servia para designar os habitantes da Alta, surgido «da bravura da gente de Coimbra que ajudou D. Afonso IV na Batalha do Salado (1340)».

Apontam-se outras origens do nome, umas mais remotas do que outras e fala-se também dos chibatas, que seriam os oponentes dos salatinas. Acima da Sé Velha ficava o Bairro Alto, Latino ou salatino; abaixo o bairro chibata, que incluiria o Arrabalde, a Baixa. O Quebra Costas servia de fronteira, local de despique e batalhas entre os dois grupos. A etimologia e até os limites da Alta são fluídos, juntam-se ainda os futricas e as tricanas, os termos não são definitivos, diluíram-se com os anos; sobrou o nome de salatinas para celebrar a população deslocada da Alta.   

Construíram-se bairros para alojar estas famílias, o de Celas, o da Fonte do Castanheiro e o Marechal Carmona, que se viria a chamar de Norton de Matos, entre outros, construídos apressadamente e sem grande esmero qualitativo. Construídos em 1946, em zonas ermas afastadas da cidade, Celas e Fonte do Castanheiro permanecem como os bairros sociais mais antigos de Coimbra, neles ecoam tradições e memórias da última geração de salatinas e seus descendentes.

Memórias de Salatinas

Maria de Lurdes Dias, a quem todos tratam por Milu, recebe-nos na Associação de Moradores do Bairro de Celas (AMBC), da qual é tesoureira. Nasceu há 86 anos na Rua dos Militares, na Velha Alta, ao lado do Hospital dos Lázaros. «Eu era telefonista, tinha centenas de números na cabeça, mas a memória já não é o que era», desculpa-se, apesar dos detalhes de que se recorda, que acompanham a sua vivacidade.

«Foi no tempo de Salazar. Ele entendeu que devia fazer a cidade universitária naquele sítio e, quando este Bairro [de Celas] ficou concluído, puseram uma camioneta à frente da casa das pessoas [na Alta] e fizeram um ultimato. Isto aqui era um deserto, o caminho era em terra, quando chovia era só lama, ouviam-se apenas os passarinhos. Formou-se aqui uma grande família, toda a gente se ajudava».

Os salatinas recriaram a sua Alta no Bairro de Celas: o centro do bairro recebeu a estátua de São João Evangelista, que coroava o topo do Colégio dos Lóios, situado diante da Sé Nova e que albergava o Governo Civil à época das demolições. Baptizaram as ruas com nomes de ruas desaparecidas da Alta: Borralho, Cozinhas, Marco da Feira, Forno, Castelo. Duas ruas cometem a proeza de se duplicarem: a Rua Larga e a dos Estudos existem tanto na Alta como no Bairro de Celas. Do Hospital dos Lázaros, que se localizava onde está agora o Departamento de Matemática da Universidade de Coimbra, salvou-se um portão, colocado no muro do IPO. Nele pode ler-se, desenhado a ferro forjado: «Hospitaes da Universidade». Objectos salvos dos escombros e toponímia para reconstituir uma vida perdida, um pequeno mundo circular de cem pequenas casas geminadas, com o Largo de São João como centro.

Milu continua: «Foi muito triste virmos para aqui. Muitas pessoas morreram com saudades, houve um senhor que se matou com desgosto, o Senhor Colaço. O meu tio Eurico ficou muito doente, sempre que ia [à Alta] chorava, um dia até desmaiou. Tenho muitas saudades da Alta, vivi lá pouco tempo, mas era muito bonita. Quando era miúda corria tudo a pé, quando ia para a escola da Boa Vista (ao lado da Casa da Escrita), era muito cabrita». E recorda-se de personagens coloridas do imaginário coimbrão, do Formiga, da Ana da Venda, do João Lambufa, «sempre bêbado, que a protegia».

Ricardo Figueiredo viveu no Bairro de Celas até 1962, do qual conta: «Bons tempos. Reproduzia-se a vivência da Alta. Já nos conhecíamos». Da Alta, recorda-se «do companheirismo, num mundo tão diverso. [Davam-se] filhos de uma sociedade com níveis muito diferentes, que se encontravam na rua, na escola pública, na catequese, no Largo da Feira [dos Estudantes], no Jardim do Leão». O Leão a que se refere é o monumento a Camões, muito importante no ideário salatina. Monumento nómada, estava originalmente colocado num largo em frente da Porta Férrea, repousou décadas ao lado do Instituto Justiça e Paz e foi colocado finalmente na Manutenção.

Para os Bairros de Celas e Fonte do Castanheiro foram os salatinas de menores posses. Já para o Norton de Matos foram, conta Milu, «aqueles que tinham empregos melhores, ou cursos, enfermeiros, escriturários, etc.», já que a renda era o dobro da praticada nos restantes bairros, o que se reflectia também nos equipamentos e na infraestrutura.  

Fernando Ribeiro, presidente da AMBC – Associação de Moradores do Bairro de Celas, que também nasceu na Alta, conta: «Este bairro tem tradições com tendência a acabar, como a Feira dos Lázaros, que era uma tradição da Alta transportada para aqui; também as Fogueiras (de São João). As visitas que iam ver os doentes no Hospital dos Lázaros compravam brinquedos e lambarices nas bancas que estavam cá fora e levavam aos doentes. A tradição [da Feira dos Lázaros] continuou na Alta, mas aqui este ano não aconteceu. Disseram-me que as pessoas que pertencem ao Grupo Folclórico [que organiza a Feira] já têm uma certa idade, que dá muito trabalho. Se a AMBC tiver ideias de fazer Fogueiras é preciso licenças para o som. Como o Bairro de Celas foi circundado de unidades hospitalares, fazer aqui barulho levanta problemas. Isto desanima as pessoas, tudo tem tendência a acabar. Os salatinas estão a ir embora, ainda há uns dias faleceu uma senhora. Estamos a desaparecer».

Milu percorre com o olhar uma galeria de fotografias que preenche a parede da Associação: «Estas caras vieram todas para aqui. Primos e tios. Eu sou a última geração da Alta, quando eu morrer vai-se tudo». 

Filhos da Alta

No Bairro da Fonte do Castanheiro, com quase uma centena de casas aninhadas na encosta do Vale da Arregaça, resta apenas uma salatina. Fernando Coelho, Presidente da Associação de Moradores do Bairro, não se considera salatina, porque não morou na Alta, nasceu já no Bairro. Para ele, a «vida no bairro era uma vida solidária, completamente diferente daquilo que temos hoje, mais individualista. Se uns faziam broa, iam levar a broa aquele e àquela. Havia essa entreajuda, porta aberta, característica de uma aldeia. Tudo mudou. As pessoas que estão agora no bairro já não têm nada a ver com os desalojados da Alta».

Na Rua das Fogueiras faziam-se as Fogueiras, reminiscências da Alta. «Isto era um ermo», continua Fernando Coelho, «não tínhamos acesso a nada. Íamos para a escola na Rua dos Combatentes, tínhamos transporte apenas [em frente ao Colégio de] São Teotónio, tínhamos que ir a pé».

Patrícia Sousa Carlos, a Tixa, já nasceu no Bairro de Celas, tem 47 anos. «Na minha casa, antes de eu nascer era a minha avó, a minha bisavó, mais dois tios, e duas tias, a minha mãe pequenina, quatro filhos. Numa casa com três quartos, imagine como é que eles viviam». No outro extremo da cidade, Fernando Coelho completa: «Os salatinas eram classe operária, funcionários públicos, polícias, etc. Eram a classe mais pobre, digamos assim. Uma pessoa assim desalojada, deslocada do seu habitat original, não é fácil».

Se muitos salatinas escaparam às dificuldades monetárias e lograram sair destes bairros, noutros, as questões sociais ecoam após uma primeira e segunda geração, fazendo reviver assimetrias económicas bem vincadas na Alta antes da sua destruição.

Fragmentos

Nádia Duarte concluiu o curso de Arquitectura no Brasil, prosseguiu os estudos ao ingressar no Mestrado de Design e Multimédia na Universidade de Coimbra e interessou-se por documentar os salatinas do Bairro de Celas. «Surgiu essa curiosidade: e se as pessoas [desalojadas da Alta] ainda estão por aí? Nunca ninguém as ouviu, são setenta anos calados, é muito tempo». Nádia registou depoimentos de salatinas, alguns já entretanto desaparecidos, «emocionavam-se, porque muitos casos foram traumáticos, o deixar a casa da Alta, as memórias. Na sua inocência, comparavam o que têm agora, com aquilo que tinham na Alta».

Nádia doou a sua interessante recolha documental, «Fragmentos», à Associação Tarrafo. Nela, adivinham-se sensibilidades profundas em relação à perda de um chão e à usurpação da identidade de lugar. Na mesma altura, o designer Joaquim Borges materializou a Alta de Coimbra pré-1942, aliando a recriação material à recolha imaterial de Nádia [ver marcador em cima].

O Bairro de Celas despertou diversos outros interesses, como o de Sara Silva, que desenhou as casas do Bairro, o que originou uma exposição e um projecto de livro para colorir, que não avançou por indisponibilidade financeira da Câmara Municipal de Coimbra. «[Os moradores] receberam-nos com entusiasmo, como se fossemos família». 

Também Pierre Marie, outro dos historiadores responsáveis pela Rebobinar, diz que estão a ponderar fazer visitas guiadas relacionadas com a Alta. Teriam forçosamente que contar a história salatina. «É uma história muito por fazer, parece que a cidade universitária faz todo o sentido e nunca se questiona o que havia lá antes. O projecto do Estado Novo era algo muito mais imponente, não conseguiu fazer o que pretendia, a construção arrastou-se por décadas e há toda uma falta de simetria em relação ao que o regime pretendia inicialmente. A dimensão imaterial é algo que não estudámos a fundo, era uma zona com muitas vivências e tradições. Havia bastantes tabernas, havia um lado cultural e social muito forte. É natural que as pessoas tenham trazido isso nas suas bagagens [para os bairros]. Foi um trauma muito forte, porque perderam toda esta parte de sociabilidade que estava ligada a um local que desapareceu». 

Canção do barbeiro

Tiago Rodrigues Martins é professor de música e o Presidente da Associação Artística e Cultural Salatina, não muito distante da Fonte do Castanheiro. Criada em 2016 por um grupo de pessoas que se juntava na extinta Escola de Música da Fundação Inatel, esta é uma associação para pessoas adultas.

Na altura da escolha de um nome para a associação, Tiago conta que «achámos interessante os salatinas, porque, metaforicamente, está relacionado com o aparecimento da nossa associação. O povo salatina é um povo que foi obrigado a sair do local onde estava, o nosso surgimento deve-se um pouco a sair do sítio onde estávamos. Depois, a nossa actividade rainha: a música. Na sua génese, o povo salatina tem raízes culturais fortíssimas; foi naquele local da Alta que existiu a primeira “escola de música” de Coimbra. Os senhores barbeiros da Alta, quando não cortavam cabelo, tocavam guitarra portuguesa. Eram locais sociais, tal como agora os cafés, e quando as tesouras não trabalhavam, ouvia-se uma guitarra a tocar. E claro, um som de uma guitarra a tocar, alguém está a ouvir, e se está a ouvir está a aprender. Davam-se ali aulas de forma informal, estava a existir música. A associação vive dessa actividade rainha, que é a música».

É uma continuidade musical que representa e dignifica a tradição musical salatina, além de que membros da direcção são salatinas e há grande proximidade entre a associação e a comunidade do Vale da Arregaça.

À entrada do Bairro de Celas, uma placa celebra onde morou Flávio Rodrigues, um aclamado músico, compositor e mestre da guitarra. Era um desses barbeiros-guitarristas salatina a que Tiago se refere, assim como o foi o seu irmão Fernando. Ensinavam guitarra entre tesouradas, primeiro na Alta, depois já nesta casa, onde chegou a ter Zeca Afonso como visita. O seu bisneto, Filipe Sampaio, vive ainda nesta casa, com a sua família. 

Pierre Marie recorda também o papel do Centro de Recreio Popular do Bairro de Celas, então com o nome de Centro de Trabalhadores de Celas, como um «palco bastante importante nos anos 80 e 90, no desenvolvimento do rock em Coimbra». Mais um nó a desatar da relevância musical destes bairros.

Continuidades e sugestões

Fernando Coelho acha que «a vivência na Alta coimbrã devia ser salvaguardada. Numa fase inicial, havendo material, seria interessante enveredar por uma exposição».  

Já para Nádia Duarte, seria «um sonho para mim se outros estudantes pudessem pegar [na recolha de testemunhos], fazer um laboratório disso, usar a infraestrutura do cinema. Também porque é um trabalho urgente, porque as pessoas estão a desaparecer. Seria interessante reunir biblioteca de livros relacionados, seria um bom apanhado histórico, devia haver uma exibição permanente, pelo menos. Na época eu queria continuar com o documentário. Havia pessoas que estavam a favor da mudança. Era uma ditadura, às vezes não dava para perceber se as pessoas eram a favor ou contra, estavam formatadas para se conter».

Para Filipe Sampaio, «a preservação da tradição da cidade e da Alta, passa pelo transmitir conhecimento e abrir esse mesmo caminho para que este não se perca. Para mim, ser salatina é um orgulho, tenho pena e algum ressentimento por viver numa cidade que parece esquecer os seus habitantes, e que dá mais valor aos que passam por cá três ou cinco anos, e que na sua maioria nem sequer cá ficam ou voltam a visitar. Os que cá estão têm saudade dos que já partiram, sejam tempos ou pessoas. Eu tenho saudades dos meus amigos, familiares e tradições que cada vez mais se ignoram, há muita coisa que poderia ser feita para manter a memória dos salatinas, a sua cultura e tradição, mas poucos são os que estão interessados nisso. A CMC tinha a obrigação de manter viva essa chama, ao incentivar convívios, espectáculos, exposições, entre outros eventos e iniciativas, mas parece evidente que não há nem haverá no futuro próximo qualquer tipo de interesse nisso».

Continua aqui.

*Imagens antigas retiradas do livro «Coimbra através dos Tempos» (Coedição Cruz Vermelha com G.C. – Gráfica de Coimbra Lds., 2004), de Rafael Marques

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