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    ACAPO Coimbra

    Cegueira sem ensaio

    A cegueira é a prova que, às vezes, é necessário fechar os olhos para se começar a ver.

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    Fotografia: Mário Canelas

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    ACAPO Coimbra

    Sexta-feira. 7 da manhã. O despertador toca a anunciar o início de mais um dia. Mário Bento desperta, sem qualquer problema. É madrugador e acredita que acordar cedo é a melhor forma de aproveitar o dia. A sua rotina é absolutamente regular: faz a sua higiene pessoal, veste-se e toma o pequeno-almoço. Entretanto, já na rua, enquanto caminha com calma pela calçada, bate inesperadamente com a cabeça no retrovisor de um camião.

    Esta podia ser (e é) a história de várias conhecidos e amigos de Mário porque, fora da sua rotina, ficou um detalhe que marca a vida deste homem natural de Ceira, no concelho de Coimbra: é cego. Só isso e tudo isso. Mário não vê. José Saramago escreveu que «só num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são». Não mentiu. Mário Bento assim o afirma. A cegueira fê-lo valorizar aquilo que realmente importa, passando a ver o mundo de outra perspetiva e, como ele, tantos outros aprendem a ver o mundo sem usar a visão.

    Mário vive a vida com limitações e conduzir é uma delas. Todavia, recorda com nostalgia o tempo em que conduzia grandes veículos de mercadorias, na empresa do pai. Ou ainda, o tempo em que era comando no exército, altura em que recebeu o primeiro diagnóstico de problemas ao nível da visão. Confessa que esteve em estado de negação nos primeiros tempos, afinal assumir que não estava bem era admitir que tinha um problema e que precisava de ajuda. Até aos trinta anos fez a vida normal, mas depois de receber o diagnóstico vieram os sustos na estrada, sobretudo à noite e cada vez mais frequentes.

    De dia, o cenário não era melhor. A luz «já era demasiada». Deixou de conduzir porque sabia que estava a pôr em risco não só a sua vida como a dos outros. Hoje em dia, Mário está de bem com a vida. Não se resignou à condição mas aprendeu a observar sem ver. É um dos vários cegos que vivem em Coimbra e acredita que a deficiência visual está longe de ser compreendida em pleno pela população, e que ainda existe rigidez e constrangimento quando se fala em cegueira. Nesse sentido, e de forma a contrariar a corrente, confessa, com um misto de seriedade e ironia, que chegou a «ver a morte passar-lhe à frente», em situações relacionadas com trabalho e admite que com uma vida menos ativa estaria menos sujeito a riscos, contudo não concebe ficar parado em casa e confia que, com treino, os cegos podem voltar a servir a sociedade e a ter uma vida dinâmica.

    Quem trabalha sempre alcança

    Eunice Santos, 45 anos, sempre trabalhou e é a prova de como as circunstâncias da cegueira podem alterar a perceção da doença. Licenciada em Comunicação Social, nasceu com baixa visão (apenas 10%) e sabia que a doença lhe corria no sangue. Herdou da mãe, da avó e da bisavó os problemas graves de visão e o peso da doença pesa-lhe nos ombros. Ainda assim, até há três anos, quando perdeu a vista quase por completo, a doença não lhe condicionava a vida: «corria, lia e andava sozinha na rua», mas reporta, com algum pesar na voz, que o que é verdadeiramente «frustrante e desmotivante» é o facto de não poder trabalhar na sua área.

    Natural de Anadia, Eunice comenta que, apesar das oportunidades de emprego para os cegos começarem a proliferar cada vez mais no mercado de trabalho, quem não vê não evolui na carreira, nem começa no mesmo patamar. «Para nós termos competitividade com outros, temos de dar mais», comenta Eunice, que não se lembra de quantas noites a fio ficou a trabalhar até depois das 23h. Sempre que havia uma vaga de emprego para um cargo na área da comunicação na Jerónimo Martins, grupo onde trabalhava, ela não hesitava em enviar o seu currículo, na esperança que as habilidades falassem mais alto que a doença.

    Apesar de Eunice e Mário terem perspectivas diferentes relativamente à cegueira, as opiniões convergem num ponto comum: a acessibilidade. Ambos afirmam que Coimbra não é a pior cidade para um cego viver. Eunice Santos adverte que viver em Coimbra «sempre é melhor do que Lisboa», mas apontam o dedo a «muitas obras na rua» e à chegada dos sistemas de partilha de trotinetes e bicicletas, que lhes veio complicar a mobilidade. Além disso, salientam a má sinalização de obras e postos de trânsito, o tamanho reduzido dos passeios e a colocação despropositada de árvores e canteiros no meio das calçadas.

    O que mais incomoda? É o estacionamento indevido em cima dos passeios. Mário contou uma das várias vezes em que ia a caminhar e deu de caras com o retrovisor de camião, que lhe bateu em cheio no rosto.

    «Sentimos que fazemos a diferença na vida destas pessoas»

    Não são só os assuntos relacionados com a mobilidade que Eunice e Mário têm em comum. O que os uniu foi, de facto, o apreço pela associação que lhes esticou a mão quando o mundo inteiro parecia ter desaparecido. Falamos, claro, da Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO). À
    primeira vista, a delegação da associação em Coimbra tinha o aspecto de um centro de dia comum: ambiente simples, asséptico e seguro. Uma das paredes à entrada está decorada com uma montagem fotográfica adaptada. «Montagem fotográfica?», assim pensaria qualquer indivíduo que pensasse qual é a utilidade de uma exposição de fotografias numa associação para cegos, mas uma legenda posicionada abaixo da mostra, com a respectiva versão em braille, desmente o pensamento.

    A exposição inclui fotografias de 3 dimensões, que permitem que os utentes da associação possam tocar e interagir com os objectos representados. A ACAPO ganhou, desde a sua criação em 1989, o estatuto de farol na vida dos cegos de Coimbra e de Portugal. No decorrer das suas vidas, parece quase inevitável um cego passar pela instituição. Dora Afonso, diretora técnica da delegação da ACAPO em Coimbra, lembra-se de ouvir falar pela primeira vez na associação nos órgãos de comunicação social. Todavia, a psicóloga de formação jamais teria pensado que a vida a levaria a este lugar e confessa que o estereótipo dos cegos concebido pela sociedade e que no passado era partilhado por si, mas em nada se assemelha àquilo que os deficientes visuais são.

    «Deparei-me com uma realidade que ultrapassa muito os estereótipos que construímos», afirma a técnica especialista. De entre vários preconceitos, Dora Afonso menciona que há «tendência para os colocar (aos cegos) todos no mesmo saco». A diretora técnica da delegação de Coimbra sublinha que em dois anos de casa, a maior aprendizagem que fez foi aperceber-se que «cada pessoa entende a perda a visão ou o facto de ter nascido sem visão de maneira diferente».

    Dentro dos 3 pilares de actuação da ACAPO – formação, inserção no mercado de trabalho e reabilitação funcional – Dora Afonso destaca o trabalho desenvolvido na reinserção no mundo laboral. A psicóloga revela ser «reconfortante» quando se cruza com utentes seus a trabalhar. Não obstante o impacto positivo da associação na cidade, Dora Afonso, ainda lamenta situações como as de Adelino Guerra, membro fundador da ACAPO, que faleceu em 2012, vítima de um desequilíbrio. A queda, que teve lugar nas imediações da Casa Municipal da Cultura, deveu-se à falta de um muro de apoio numa zona que se encontrava em obras.

    A diretora técnica considera a morte «estúpida» e evitável. Frisa que é a prova que «ainda há muito a fazer» no que toca à consciencialização da sociedade e à adoção de práticas mais inclusivas». Conviver diariamente com deficientes visuais é uma porta aberta para compreender melhor a cegueira. Ana Eduarda, assistente social também na ACAPO em Coimbra, já não se admira com as supostas aprendizagens miraculosas dos cegos. Ana indica que «numa fase inicial, quase que sobrevalorizava qualquer coisa que fizessem». Hoje em dia, a assistente social dá valor ao esforço que é necessário para aprender a ser novamente autónomo, mas já não olha para os cegos enquanto «super-heróis».

    A técnica refere que a inferiorização que os cegos sentem relativamente à capacidade de realização de actividades do quotidiano afecta o seu estado psíquico. O excessivo paternalismo que sofrem origina inseguranças e sentimentos de «não-pertença» que, como Ana reiterou, são «a pior situação que podem sentir». A funcionária, que já trabalha na ACAPO há 22 anos, observa que o perfil da associação se alterou nos últimos anos. «Estávamos mais fechados aqui na nossa cave, participávamos pouco
    nas reuniões de câmara», refere a técnica superior quando explica a mudança de paradigma da
    associação para uma postura mais proativa e integradora na sociedade conimbricense.

    José Saramago tinha mesmo razão: só num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são. Mas ser cego é valorizar aquilo que se tem, é saber que se é mais forte do que alguma vez se pensou, saber que se é menos dependente do que se acreditava e descobrir que, no final de contas, o mais importante, é invisível aos olhos.



    * Carlos Pedro Bento é estudante da licenciatura em Jornalismo e Comunicação, da Universidade de Coimbra e realizou esta reportagem no âmbito da unidade curricular de Produção Noticiosa.

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