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A cidade e as fábricas

Fomos até à Pedrulha, desfiar as venturas e desventuras do bairro de Coimbra e dar a conhecer o forte dinamismo industrial que, no seu auge dos anos 60 a 70, chegou a dar emprego a milhares de trabalhadores.

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Fotografia: Helena Prata (capa), Mário Canelas, Arquivo de Urbex Portugal, Azulejo Publicitário Português

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«À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
– Garrafa, prato, facão —
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção».

Excerto de O Operário em Construção, de Vinícius de Moraes, 1959

A Pedrulha é um bairro incompreendido; o nome equilibra-se na ponta da língua, materializa a visão duma periferia industrial cheia de esqueletos de fábricas, onde ecoam memórias surdas de décadas de trabalho. Diz-se que Coimbra não tem indústria, mas teve.

Dona Alice, 103 anos feitos, sorriso aberto e memória fresca, ainda se recorda do tempo anterior às fábricas. «Antes das fábricas não havia nada aqui, era uma aldeia. Depois veio a Triunfo, veio a Estaco». Com a indústria vieram milhares de operários, a aldeia transformou-se, não sem algum atrito, a estabelecer confianças. As pessoas que cultivavam os Campos do Bolão ali ao lado, viram alternativa de trabalho, juntaram o esforço da enxada ao sustento mecânico.

Dona Alice trabalhou na Lufapo durante 8 anos até se casar, na cantina e no escritório. Não gostava de ir para o escritório, porque «os empregados começavam a entender-se comigo e eu não gostava». Nos bailaricos da aldeia, do adro da Igreja à sede do Grupo Recreativo da Pedrulha, os operários juntavam-se aos locais e tornavam-se, também eles, da terra.  

Fernando Duarte, que trabalhou na Estaco a partir dos anos 70, recorda a agitação daqueles dias: «Aquilo era uma alegria, ver aquelas pessoas a sair [da fábrica]. A vida não era fácil, a gente não ia de férias para lado nenhum. Nas férias o meu passatempo era ficar ao portão e ver os colegas a sair».

Chegando ao início deste século e a cada fábrica que fechava, esfumou-se o grande dinamismo industrial da Pedrulha e a decadência tomou conta da paisagem e preencheu os olhares de quem resistiu por aqui, enquanto centenas de famílias se iam embora ou se reinventavam. Sobram ruínas e todo um passado para contar.

A engrenagem

Até ao início do Século XX, a indústria da cidade concentrava-se em Santa Clara e na Baixa, depois também na Arregaça e no Arnado. De modo a organizar o crescimento da cidade, estabeleceram-se planos de urbanização, de Étienne de Gröer (1940) e do Professor Antão de Almeida Garrett (1955), que determinaram a localização da indústria fora do centro da cidade. O Vale de Coselhas foi industrializado, mas o custo dos terrenos tornava mais interessante, porque menos dispendioso, a zona da Pedrulha, já assinalada nos planos como zonas de expansão industrial. Da industrialização de Coselhas resta actualmente a Fucoli.

Foto: Azulejo Publicitário Português

No Loreto já se tinha fixado a Sociedade de Cerâmicas Lusitânia em 1919, a posterior Lufapo (Lusitânia Faianças e Porcelanas), vinda do Terreiro da Erva. Depois da Lufapo, inaugurou a Fábrica Saturno na Pedrulha, em 1936, inaugurando as décadas de ouro da indústria de Coimbra, dos anos 40 aos 80. Em 1949 abre a Fundição Gomes Porto, em 1953 inaugura a Triunfo Bolachas, vinda do Arnado.

Em 1956 abrem  a Triunfo Rações (que contava com ramal ferroviário privativo), a Fiação de Algodões de Coimbra (Fiaco) e a Fábrica de Cerveja de Coimbra, transferida para aqui da Avenida Emídio Navarro. Do mesmo ano é a Cerâmica Ceres, a norte da Pedrulha. Nesta altura abriu o Matadouro Municipal, vindo de Montes Claros. Em 1958 abriu a Estatuária Artística de Coimbra (Estaco), vinda do Arnado, ou das Lajes, como referiram alguns trabalhadores. Em 1959 estabeleceu-se a Jaime Dias, onde agora é o Arena Sport. Em 1961 abre a Auto-Sueco Coimbra, agora Litocar e, em 1965, deslocou-se para aqui a Litografia Coimbra, vinda também do Arnado, agora com o nome de Box Graphic.

Célia Abrantes, que trabalhou na cantina da Triunfo, percorre de memória: «Logo a seguir à Triunfo havia o Banco Fonsecas & Burnay, a fábrica Teixeira Duarte, as malhas, que ficou sempre como fábrica do Zé Eduardo, a fiação, depois a seguir era a moagem, a cerveja e Carvalhelhos. Em frente ao aviário, o esfarrapa-o-pêlo, houve um incêndio que destruiu aquilo tudo. Havia a fábrica das correntes, a Estaco…»

Muitas outras empresas aqui se estabeleceram, como a fábrica António Firmino Batista & Irmão, a Esaco, as Malhas Nelitex, Flama e Redinha, a Fundição Alves Coimbra, a Fonseca e Seabra, a Unidade Metalúrgica Abel Machado e Cª, a Luso-Mecânica de Coimbra, a Fundição José Domingos Batista e a Sociedade Industrial de Escovas de Aço (Sindex) e a Unacel, entre outras. Na extinta Termec chegou a funcionar o Centro de Exposições da Associação Comercial e Industrial de Coimbra.

Para servir as fábricas de trabalhadores, são também estabelecidos bairros operários na Relvinha e no Loreto, por iniciativa pública, e a Pedrulha urbaniza-se rapidamente pela iniciativa privada. Esta chegou a ser a terceira zona industrial do país, com 250 hectares que, no seu auge, empregava milhares de operários. Só a Estaco, a Lufapo e as duas Triunfo empregavam mil trabalhadores cada, num universo que se aponta serem de entre 5 a 6 mil trabalhadores, em mais de duas dezenas de unidades fabris. Muitas famílias se formaram nas fábricas e nelas trabalhavam várias gerações. Muita da mão-de-obra provinha da Pedrulha e do Loreto, mas também de inúmeras localidades vizinhas e de além de Coimbra.  

Coimbra operária

Encontramos Célia Abrantes no café Xiolas, em Eiras, viúva há três meses. O marido, a quem chamavam de Escola, trabalhava na Coimbra Editora, também fechada. Célia traz inúmeras recordações dos tempos da fábrica: «A amizade era muito grande, todos se ajudavam. Havia camaradagem. Ficámos com raízes, porque casámos lá, tivemos lá os nossos filhos, fica sempre aquele elo de amizade. Quando nos encontramos as pessoas ficam emocionadas. Há muita gente que não se vê há imenso tempo, mas é como se não passasse tempo».

A mãe de Goreti Valença também trabalhou na Triunfo, a mãe grávida de si e «o saco das águas rebentou na fábrica, era sábado, e dali a minha mãe foi de camioneta até Coimbra e depois a pé para a antiga maternidade aos Arcos do Jardim».

Também Maria Arminda Dias recorda esses tempos: «Bastantes saudades do velho tempo em que havia a Triunfo, meus pais trabalharam lá muitos anos. Recordo de dificuldades, nada como agora, nem se compara, via os meus pais a contar os tostões. Eu própria, quando me casei, também tinha que fazer contas, trabalhei na fábrica de lanifícios. Dentro da fábrica e na própria rua, sentíamo-nos como uma família».  

Célia conta que, naquele tempo, «havia tudo na Pedrulha. Cabeleireira, costureira, pessoas a vender ao público. Tínhamos um elo com aquelas pessoas. Ainda sou amiga da cabeleireira, da Esperança. Havia tudo, não precisávamos de ir à cidade. Havia quem vendesse roupa, outras vendiam estanho, coisas para alindar a casa, havia crédito, havia honestidade. Tenho a memória muito vincada porque foi o melhor tempo que passei. Mesmo as minhas duas filhas, que andaram até aos 6 anos na creche da Triunfo, ainda têm boas recordações».

Partilham-se boas recordações, contam-se dificuldades. Célia ia de camioneta de madrugada e voltava à noite. «Era uma vida apressada, não havia um minuto a perder. Tínhamos que ir a correr. Muitas pessoas tinham complexos das fábricas. As pessoas das aldeias chamavam os trabalhadores das fábricas de mijadas, para as inferiorizar. Amava aquela fábrica, fico traumatizada, dá-me vontade de lá ir. Agora deviam voltar a reconstruir as coisas. Há falta de trabalho, muita gente não tem onde trabalhar». 

A decadência

No Centro Social e Paroquial da Pedrulha reencontram-se mais de duas centenas de ex-trabalhadores da Estaco. Partilham histórias, falam do passado, enumeram amarguras. Soltam gargalhadas que se vão tornando mais francas com o tempo.

Com a decadência da indústria, pela alteração dos mercados ou por outras razões, as fábricas da Pedrulha foram fechando uma após a outra. A Estaco teve o último estertor em 2002, abriu falência e teve as instalações e bens apreendidos. A Triunfo Rações fechou em 1999, a Triunfo Bolachas em 2001, quando contava apenas com 150 trabalhadores; a Fábrica de Cerveja fechou em 2002. Foi uma década com dezenas de fechos e falências e a catástrofe do desemprego para centenas de famílias, assinalando definitivamente a queda do sector secundário e a dedicação quase exclusiva de Coimbra aos serviços e à terceirização.

Do Matadouro e da Gomes Porto sobraram apenas alguns traços das fundações. A Fiaco foi parcialmente ocupada por várias pequenas empresas, não está totalmente devoluta. A Lufapo vive agora uma nova vida e a Fábrica de Cerveja renasceu pela farmacêutica Plural, fruto duma reabilitação premiada. Mas as maiores empresas, testemunhas dum grandioso passado industrial e repositório de grande riqueza arquitectónica modernista e com elevado interesse arqueológico industrial, permanecem abandonadas e devolutas. Nos cafés e supermercados, no Bitoque, no Lobito, no café Caniço, pontos de encontro da terra, as memórias cruzam-se, os trabalhadores recordam. 

Estaco de alma

Fernando Duarte e José Manera trabalharam na Estaco até ao final, quando restavam apenas 230 trabalhadores, a maior fábrica da Pedrulha, de 60 hectares. Muitos ficaram com dívidas, alguns na ordem dos cento e tal mil euros, dívidas que permanecem até à actualidade, feridas abertas em centenas de famílias.

Na altura em que as falências se acumulavam, era habitual a contestação e os salários em atraso. Mas, segundo contam, todas as dívidas foram saldadas, com excepção da Estaco: «a Cerveja pagou tudo, a Triunfo pagou tudo, Gomes Porto e Matadouro também».

Fernando serve como representante dos trabalhadores da massa falida e é um dos seus maiores credores. A dívida vai sendo paga em tranches, distribuída pelos trabalhadores assim que o administrador fiscal venda o património sobrante. Fernando considera estes valores como perdidos, emociona-se ao recordar: «Tudo boas memórias. Eu tinha 12 anos quando a Estaco veio para aqui vindo das Lajes. Os proprietários, Zé Augusto e o irmão, precisavam de dinheiro e vieram capitalistas de Arrancada do Vouga, a família Xavier, que encostaram o Zé Augusto na secretária a ler o jornal. Depois essa família veio a abrir a cerâmica Dominó em Cernache».

José Manera acrescenta: «Foi o melhor momento da minha vida. Tive outros patrões, mas o Zé Augusto foi um bom patrão. Havia muitas famílias lá. A fábrica não parava, os fornos funcionavam 24 sobre 24 horas. Turnos da meia noite às 8h, das 8h às 4h e das 4h à meia noite».

Fernando continua: «Começou a correr mal a partir do momento em que os Mello entraram e também os espanhóis apareceram, [competindo]. Mas estas pessoas não percebiam nada do que estavam a fazer. O Manuel Machado, Presidente da Câmara Municipal de Coimbra à altura, portou-se mal nesta questão, não foi interventivo como podia ter sido. Muitas famílias ficaram mal. É uma tristeza ver o que foi uma zona industrial ser um cemitério de empresas. A Fábrica de Cerveja está reconvertida, pronto. A Estaco está como está, a Triunfo idem, é uma lástima ver aquilo. Das indústrias fecharam tudo, não sei se é falta de visão, se são outros interesses. A gente ainda vai aguentando, os nossos netos não sei. É pena a indústria acabar. Depois não há emprego». 

Ruínas falantes

Zita Bacelar Moura já tinha percorrido estes passos com um belo artigo no Sinal Aberto. O seu interesse foi despertado por um «fascínio mórbido» que tem pela indústria decadente, pelo urbex, a exploração urbana [conheçam o conceito no marcador em cima].

Ao descobrir a Pedrulha e ao entrar nos espaços desolados das fábricas, Zita apercebe-se que ali «passaram, se não milhares, largas centenas de famílias. Muitas vezes eram os homens e mulheres que trabalhavam nestas fábricas e que histórias é que elas contam. Estamos a falar de espaços que fervilhavam de vida e que de repente são uma ruína. Quando vou atrás dessas pessoas eu não sei bem com que vou falar. Chego lá com vinte aninhos para ouvir as histórias completamente traumáticas das pessoas, vou de casa em casa, falo com dirigentes sindicais. Principalmente ao falar com as pessoas do bairro, é que percebi o terror que aquilo foi. A escolinha primária, que foi uma das imagens que mais me impactou, está a olhar para um cemitério industrial, causou-me estranheza.

Eram famílias inteiras que se criavam nestas fábricas, «as pessoas olham com carinho», recorda. «Casais que se conheciam. Chocou-me que ao lado da creche da Triunfo é um ponto de encontro de toxicodependentes, estavam lá as seringas. Há dor, pelas coisas que ficaram penduradas, que ficaram mal resolvidas. Eu não tinha noção de como foi do lado dos industriais e foi um sindicalista que me esteve a contar, dinheiro não faltava. Só que investiram em grandes carros, grandes festas, não modernizaram o equipamento, não capacitaram os trabalhadores».

Zita também percebeu que havia interesse dos antigos trabalhadores manterem contacto, de «não perderem as raízes uns nos outros, mas isso também se vai perdendo ao longo dos anos. Perdura a amargura, mesmo que continuem a nutrir carinho uns pelos outros». 

Exploração urbana

Francisco Almeida, Ana Contente e Helena Gomes são um grupo de exploração urbana de Coimbra que visita e documenta locais abandonados. Sobre a Triunfo, que visitaram, dizem: « Tivemos o privilégio de poder falar com pessoas que ainda se lembram dos tempos de glória da Triunfo, da vida que elas davam àquela parte da cidade e do cheirinho que se fazia sentir na rua das bolachas acabadas de fazer».

Visitaram as duas fábricas devolutas da Triunfo: «A primeira que visitámos foi a fábrica que era dedicada à produção de rações para animais, que se destaca, desde logo, pelo grande letreiro a vermelho que ainda sobrevive na parede exterior do edifício e onde ainda se pode ler o seu nome «Triunfo». A visita foi intimidante, não só pelo perigo de andar sobre os seus vários andares bastante decadentes a cerca de 30 metros de altura, como também pelo constante barulho dos pombos que se faziam ouvir no silêncio dos corredores vazios. A segunda fábrica era dedicada principalmente à produção de bolachas e, ainda hoje, é possível observar surgindo da vasta vegetação que já teima em cobrir parte da fachada um azulejo lindíssimo, ainda bastante bem preservado, com a imagem de um homem montando um pégaso. As fábricas encontram-se num estado extremamente perigoso, bastante danificadas e sem espólio no interior. Percebe-se que grande parte da sua destruição se deve ao normal desleixo que estes lugares abandonados sofrem com o passar do tempo».

Foto: urbex

Também Helena Prata gosta de praticar exploração urbana, de explorar e registar fotograficamente sítios abandonados. Encontra «beleza nas patines e nas texturas, na natureza que progressivamente retoma para si os espaços». Helena visitou as ruínas da Estaco e conta sobre a sua exploração: «Um dos aspectos que me pareceu mais impressionante e me levou até à Estaco foi a dimensão da fábrica, existiam inúmeros espaços para fotografar assim como vestígios da produção cerâmica, como os pigmentos de cor, moldes, peças de cerâmica, fornos, assim como ainda alguma sinalética. Além do espaço em si, impressiona também o nível de destruição do espaço, parece quase um cenário de guerra, com paredes derrubadas, cerâmica partida, lixo».

Foto: Azulejo Publicitário Português

Helena espera que as suas fotografias ajudem a reflectir sobre o que fazer nestes espaços, «que resulte numa consciencialização crítica sobre a destruição do património, sobre o declínio económico e social da cidade associada aos despedimentos e à falta de produção, assim como o surgimento de soluções para alguns espaços que têm interesse histórico, que poderiam ser musealizados ou reaproveitados com outros fins e que a maioria pessoas desconhece a sua importância.

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