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SINGULARES II

“ Tenho um apartamento vazio lá em Caracas. Será sempre a minha casa, mas fiquei cansada de ter medo. Dou por mim a imaginar-me a voltar, a abrir as portadas, devolver luz às divisões abandonadas. A minha filha diz que já nem lá quer ir, não temos por que voltar. Eu acho que nunca vou […]

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Tenho um apartamento vazio lá em Caracas. Será sempre a minha casa, mas fiquei cansada de ter medo. Dou por mim a imaginar-me a voltar, a abrir as portadas, devolver luz às divisões abandonadas. A minha filha diz que já nem lá quer ir, não temos por que voltar. Eu acho que nunca vou deixar de querer regressar.

Um dia estava a sair de uma pastelaria e um homem apontou-me uma pistola. Foi tudo tão rápido: antes ainda ia ao cinema, bebia um copo com as minhas amigas, mas no espaço de anos perdemos um dia-a-dia. Tudo era feito em função de podermos ter uma arma a ameaçar-nos a vida em qualquer esquina. Nasci lá, sempre lá vivi, e foi lá que tive uma filha, por isso claro que me custava muito imaginar sair, viver noutro país. No entanto, quando dei por mim sentia que aquilo não era viver.

Sou filha de pessoas muito humildes. O meu pai trabalhou desde os 9 anos para ajudar os pais. Passou muitas dificuldades, mas era um homem de força que as venceu sempre. A minha mãe perdeu a mãe antes mesmo de a ter: morreu no parto. O meu avô acabou por a pôr num convento desde pequena, onde estudou. Uma freira afeiçoou-se a ela e deixou o hábito para a adotar. Os meus pais conheceram uns anos depois, e juntos construíram uma infância muito feliz aos seus quatro filhos. Eu sou a mais nova. Com muito sacrifício dos meus pais, todos conseguimos estudar. Não sabia bem que fazer, acabei por ingressar numa carreira técnica de banca e seguros porque o meu irmão havia criado uma corretora e eu soube que seria a minha oportunidade. Na verdade, foi a nossa: todos os irmãos acabaram por trabalhar na empresa juntos. Os seguros foram a minha vida durante 20 anos. Os meus pais ficaram muito felizes por termos conseguido abrir a nossa empresa. Sempre vivemos tudo em família, somos muito unidos.

Não tive muitas relações amorosas, mas foram todas histórias fortes. Conheci alguém com quem vivi 10 anos e o acontecimento mais marcante da minha vida: ter uma filha. Depois de me separar, vivi muito tempo feliz só com ela. Mas passados uns tempos dei por mim sozinha, sem parceiro e numa vida de prisão em casa. Vim à Europa visitar família em Madrid e lembro-me de sonhar que me apaixonava por alguém de lá, sei lá, num café ou na rua, como se dá nos filmes. Mas isso é mesmo só nos filmes, a mim não me aconteceu. Regressei a Caracas sem me lá ver um futuro e um dia uma amiga minha sugeriu-me que me inscrevesse num daqueles sites de encontros de pessoas porque a irmã tinha conhecido o marido lá. E eu tive medo, diziam cada coisa destes encontros, mas arrisquei. Inscrevi-me, paguei a subscrição mensal e esperei. Tive sorte, apareceu alguém e começámos logo a conversar bastante. Primeiro por escrito, depois telefone e finalmente por videochamada. Quando dei conta falávamos há meses. Começámos a falar de nos ver. Mas eu estava em Caracas e ele… em Coimbra. Decidi vir vê-lo, vim de viagem com a minha filha. Já falávamos há ano e meio, precisávamos de nos ver para saber o que era aquilo. Nunca contei à minha família sobre onde o conheci, inventei que o tinha conhecido no aeroporto em Madrid naquela viagem que tinha feito.

Quando nos vimos pela primeira vez senti-me uma jovem apaixonada. Foi tão estranho. E tão bom. As férias correram muito bem, eu adorei cá estar. Mas também não foi fácil, a minha filha demorou a habituar-se à ideia de a mãe ter mais alguém que não ela.

Tomei a decisão de vir definitivamente. A situação económica na Venezuela estava cada vez pior. Foi a decisão mais difícil da minha vida, mas achei que tudo fazia sentido: estava apaixonada e já não me sentia segura em casa. Mesmo financeiramente, apesar de ter emprego estável, tudo começava a ficar cada vez mais caro, pensei que em breve seria impossível de acompanhar. Voltei a Caracas das férias decidida, mas ainda levei um ano a preparar tudo. A minha família demorou muito a aceitar a minha decisão e mim também me custou a separação. A minha filha não queria vir, foi bem duro. Veio com 12 anos. Agora, passados 5, quando digo que um dia ainda voltamos ela diz-me que não, que não quer. A menina que tinha medo de não se adaptar, hoje é bilingue, sente Coimbra como casa e já não se lembra de ter medo de pistolas.

O choque de culturas foi grande. Os Venezuelanos são quentes, afetivos, fazemos festas por tudo. Vocês são taciturnos, melancólicos, mais contidos. Mas habituámo-nos rápido. Passado um ano casámos — eu, a casar-me com esta idade, alguma vez imaginei. Nos primeiros tempos ajudava o meu marido na sua loja e um dia um cliente com quem habitualmente falava espanhol disse-me que trabalhava na área de turismo. Pensei «olha que giro». Indaguei se não precisavam de mais pessoas. Foi assim que comecei a distribuir publicidade sobre o Mosteiro de Santa Cruz e o Seminário. A verdade é que pouco depois apareceu outra oportunidade: a pessoa que fazia as visitas guiadas saiu. Perguntaram-me se achavam que eu conseguia dar visitas guiadas. Não respondi que sim, nem que não. Disse «aprendo». Estudei, estudei: História de Portugal, do Mosteiro, do Seminário, da cidade, eu li tudo o que podia, aprendi tudo o que não sabia. Na minha primeira visita tremia por todo o lado. Trabalhei em seguros uma vida, não sabia nada de turismo e de repente, aos 50 anos, era guia turística a 6000 quilómetros do sítio a que sempre chamei casa.

Não sabia nada de Coimbra, agora é a minha joia. Já mostrei estes cenários a muita gente, e tenho muito gosto em fazê-lo. Adoro ir às redes sociais ler os comentários de turistas a dizer que gostaram muito da minha visita, enche-me o coração. Quando conto a história do mosteiro, quando passeio nestes claustros, lembro-me da minha mãe que viveu num convento e penso como as histórias têm um condão de se tocarem, como se fosse o destino a trazer-me aqui.

Há uns anos se me dissessem que iria viver em Portugal, numa cidade mais pequena, casar com um português e ser guia turística eu provavelmente rir-me-ia. Às vezes penso nos filmes que fazia em conhecer um homem na rua e ser feliz para sempre. E o agora parece mesmo um filme.

Conheço gente daqui, que sempre viveu em Coimbra, que não conhece estes claustros, não conhece tanta coisa bonita da sua própria cidade, e tenho pena. Mas percebo, nem imaginam os tesouros que aqui estão. Como eu. Sei que Caracas deve ter muito que não lhe vi e agora nem sei se vou chegar a ver. Nascemos num sítio, mas não o procuramos nem descobrimos. Achamos que vai lá estar para sempre.

Texto e foto de Ana Sousa Amorim

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