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SINGULARES III

“ Quando fiz 30 anos tinha uma vida normal. Perfeitamente normal. E adorava-a. O que se passou nos anos seguintes e a maneira como a minha vida foi ficando cada vez mais difícil parece um filme dramático cujo final temo todos os dias. Cresci e vivi em Coimbra, mas quando casei, em 2002, eu e […]

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Quando fiz 30 anos tinha uma vida normal. Perfeitamente normal. E adorava-a. O que se passou nos anos seguintes e a maneira como a minha vida foi ficando cada vez mais difícil parece um filme dramático cujo final temo todos os dias.

Cresci e vivi em Coimbra, mas quando casei, em 2002, eu e o meu marido decidimos ir viver para a Lousã, terra que nos proporcionou uma boa qualidade de vida e amigos especiais. Em 2006 a palavra diagnóstico entrou na minha vida: Alzheimer ao meu pai. Encarei a notícia com a força possível. Apesar de tudo a vida continuava a sorrir-me e muito: no ano seguinte fui mãe.

Ainda estávamos embrenhados no namoro daqueles primeiros meses de bebé, ele tinha seis meses, quando um dia o meu marido acordou e não conseguia mexer as pernas. Foi internado e a palavra diagnóstico voltou: esclerose múltipla. Foi um choque perceber de repente a repercussão que a doença ia ter nas nossas vidas. Após o período de internamento, o meu marido recuperou a marcha e seguiram-se anos difíceis de internamentos e tratamentos.

Tinha uma profissão com bastante responsabilidade. Sentia-me exausta — e sabia lá eu o que era cansaço — mas o trabalho foi muitas vezes o meu escape. Numa vida em que tudo me parecia escapar das mãos, no trabalho eu funcionava, e bem. Com reuniões noites dentro, um filho para cuidar, um marido constantemente entre internamentos, no início, as viagens entre Lousã e Coimbra, também eram o meu momento. Era uma altura em que me permitia não pensar, não me preocupar, não trabalhar, só ir. Mas, pouco a pouco, perdi o espaço mental para relaxar, tudo era exaustão. Até as viagens. Então convenci o meu marido e voltámos para Coimbra. Custou-me muito tomar esta decisão, porque estávamos a sair de uma comunidade onde erámos tão felizes, mas pareceu-me ser o mais prático para nós, afinal, o trabalho, o hospital e a escola estavam aqui. Regressámos a Coimbra.

A doença avançava a passos largos e em 2014, quando nada mostrava sinais a travar, quando até o controlo dos esfíncteres já lhe roubara, o meu marido fez um auto transplante de medula óssea que apesar de ter um processo duro de recuperação, devolveu-lhe muita dignidade que já tinha perdido. Embora não tenha voltado a andar, o transplante trouxe-lhe uma qualidade de vida que pensávamos já não ser possível.

Em 2012, mesmo depois de termos decidido não ter mais filhos porque a doença tornava a nossa vida muito desafiante, descobri que estava grávida. A nossa filha não foi planeada, mas de todas as surpresas da nossa vida, foi a única que foi boa. Estava escrito, tinha de ser assim.

Paralelamente, e sem que tenha percebido logo o que se passava, a minha entidade empregadora começava a esvaziar-me de funções. Umas tarefas aqui, outras ali, e de repente mudaram-me de local de trabalho e eu, que era secretária-geral, via-me no terreno de novo. Alegaram que me estavam a ajudar porque eu não tinha muita disponibilidade, o que não é verdade. Sempre dei tudo. Sei o que valho. Quando tudo me falhava, eu virei-me para o trabalho. Era a única coisa que controlava, por isso fazia-o bem, dava-me estrutura, empoderava-me. Esta atitude magoou-me, senti-me muito fragilizada, mas o sentimento de injustiça era mais forte e fez-me lutar: pu-los em tribunal. Ganhei.

Foram sentenciados a reintegrar-me nas minhas funções. Um processo judicial contra a nossa entidade empregadora chega para transformar uma vida simples num caos, na minha foi uma bomba. Depois de reintegrada puseram-me numa sala no meu anterior local de trabalho com uma secretária, uma cadeira, um furador e um corretor. A mensagem era clara: nunca mais nada ia ser o mesmo. Tinha perdido o meu trabalho, depois de 19 anos, com uma carreira de sucesso, sem cunhas, sem ajudas, eu era descartável e estava a ser descartada. De tudo, o que mais me custou foi a displicência de algumas pessoas. As que verdadeiramente me queriam tramar, as que foram más de forma ativa, já nem me surpreendiam. Mas as que simplesmente ignoravam foram uma dura traição. Mais do que a mim, à humanidade de cada um. Perguntei-me várias vezes como era possível ver o que me faziam e continuar a dizer «bom dia» como se nada fosse. Foram três meses dolorosos. Há pessoas que dizem que gostavam de não ter nada que fazer no trabalho, mas não imaginam a afronta que isso é para o nosso ego, pessoal e profissional. Para mim, sabendo-me competente, reduzida à insignificância da não produção forçada, foi dos mais duros golpes que vivi.

Em plena batalha legal, a palavra diagnóstico voltou de novo, mas agora era a mim que me saía a fava: doença de Ménière. Descobri que já até havia perdido parte da audição. Agora ando bem medicada e os surtos da doença têm sido raros, mas já passei semanas na cama sem me conseguir levantar.

Acabei por aceitar sair da entidade empregadora com indemnização. Na altura, não tive forças para continuar. Não queria continuar ali. Trouxe uma indemnização que nunca vai pagar a humilhação a que me sujeitaram porque essa não se traduz em dinheiro. Desde 2017 que estou desempregada.

Uma pessoa pensa que por esta altura já estou habituada à palavra, mas quando ouvi diagnóstico de novo em 2019 foi como se sentisse facas a cada sílaba. A minha filha foi diagnosticada com Diabetes tipo 1. A doença implica uma série de protocolos que revolucionaram de novo a nossa vida: monotorização constante e a pesagem da comida para contabilização das calorias. Todas as noites é preciso que alguém fique de vigília para lhe medir os valores. Começo a ensiná-la a contar calorias, para que seja autónoma porque não me esqueço que também o pai e a mãe carregam diagnósticos que nos podem incapacitar. Mas a angústia de ter uma filha com uma doença assim é sufocante.

No meio de tudo isto vivemos com uma pensão de invalidez e com um subsídio social de desemprego que não esticam. Eu quero trabalhar porque sou feliz a ser produtiva, mas tenho 48 anos, o que no mercado de trabalho é uma desvantagem, e não quero nem posso ocultar a minha vida pessoal em qualquer entrevista. Tentei investir no meu currículo, fiz um MBA entretanto e agora estou a fazer uma nova licenciatura para ter mais ferramentas e quiçá montar um negócio por conta própria já que não sou material empregável. Só quero uma solução, um caminho, sinto-me perdida.

A minha mãe ajuda-me como pode. O meu pai já não me conhece. Há dias em que percebo pelo seu olhar que sabe que gosta de mim, mesmo que não consiga dizer que sou filha dele. Outras em que sou-lhe ninguém. Há uns tempos disse-lhe que era filha dele e ele, absorto, desatou a rir. Foi absurdo e dilacerante.

Quando leio histórias de superação invejo-lhes a resolução. Há anos que sinto que vivo outra vida que não a minha, a que se adivinhava normal sem incidentes de maior. Se sou feliz? Acho que sim, sei que há vidas bem piores que a minha, mesmo que às vezes não o consiga ver. Amo os meus filhos e o meu marido cuja força admiro mais que tudo. Mas sinto que a minha vida é uma equação que estou permanentemente a tentar resolver e não acho resposta. Quero muito descobrir a solução, mas, por mais tempo que passe qual matemática debruçada em cadernos cheios de números, não há maneira de lhe ver um resultado.

Quando fiz 30 anos tinha uma vida normal. Perfeitamente normal. E adorava-a. O que se passou nos anos seguintes e a maneira como a minha vida foi ficando cada vez mais difícil parece um filme dramático cujo final temo todos os dias.

Cresci e vivi em Coimbra, mas quando casei, em 2002, eu e o meu marido decidimos ir viver para a Lousã, terra que nos proporcionou uma boa qualidade de vida e amigos especiais. Em 2006 a palavra diagnóstico entrou na minha vida: Alzheimer ao meu pai. Encarei a notícia com a força possível. Apesar de tudo a vida continuava a sorrir-me e muito: no ano seguinte fui mãe.

Ainda estávamos embrenhados no namoro daqueles primeiros meses de bebé, ele tinha seis meses, quando um dia o meu marido acordou e não conseguia mexer as pernas. Foi internado e a palavra diagnóstico voltou: esclerose múltipla. Foi um choque perceber de repente a repercussão que a doença ia ter nas nossas vidas. Após o período de internamento, o meu marido recuperou a marcha e seguiram-se anos difíceis de internamentos e tratamentos.

Tinha uma profissão com bastante responsabilidade. Sentia-me exausta — e sabia lá eu o que era cansaço — mas o trabalho foi muitas vezes o meu escape. Numa vida em que tudo me parecia escapar das mãos, no trabalho eu funcionava, e bem. Com reuniões noites dentro, um filho para cuidar, um marido constantemente entre internamentos, no início, as viagens entre Lousã e Coimbra, também eram o meu momento. Era uma altura em que me permitia não pensar, não me preocupar, não trabalhar, só ir. Mas, pouco a pouco, perdi o espaço mental para relaxar, tudo era exaustão. Até as viagens. Então convenci o meu marido e voltámos para Coimbra. Custou-me muito tomar esta decisão, porque estávamos a sair de uma comunidade onde erámos tão felizes, mas pareceu-me ser o mais prático para nós, afinal, o trabalho, o hospital e a escola estavam aqui. Regressámos a Coimbra.

A doença avançava a passos largos e em 2014, quando nada mostrava sinais a travar, quando até o controlo dos esfíncteres já lhe roubara, o meu marido fez um auto transplante de medula óssea que apesar de ter um processo duro de recuperação, devolveu-lhe muita dignidade que já tinha perdido. Embora não tenha voltado a andar, o transplante trouxe-lhe uma qualidade de vida que pensávamos já não ser possível.

Em 2012, mesmo depois de termos decidido não ter mais filhos porque a doença tornava a nossa vida muito desafiante, descobri que estava grávida. A nossa filha não foi planeada, mas de todas as surpresas da nossa vida, foi a única que foi boa. Estava escrito, tinha de ser assim.

Paralelamente, e sem que tenha percebido logo o que se passava, a minha entidade empregadora começava a esvaziar-me de funções. Umas tarefas aqui, outras ali, e de repente mudaram-me de local de trabalho e eu, que era secretária-geral, via-me no terreno de novo. Alegaram que me estavam a ajudar porque eu não tinha muita disponibilidade, o que não é verdade. Sempre dei tudo. Sei o que valho. Quando tudo me falhava, eu virei-me para o trabalho. Era a única coisa que controlava, por isso fazia-o bem, dava-me estrutura, empoderava-me. Esta atitude magoou-me, senti-me muito fragilizada, mas o sentimento de injustiça era mais forte e fez-me lutar: pu-los em tribunal. Ganhei.

Foram sentenciados a reintegrar-me nas minhas funções. Um processo judicial contra a nossa entidade empregadora chega para transformar uma vida simples num caos, na minha foi uma bomba. Depois de reintegrada puseram-me numa sala no meu anterior local de trabalho com uma secretária, uma cadeira, um furador e um corretor. A mensagem era clara: nunca mais nada ia ser o mesmo. Tinha perdido o meu trabalho, depois de 19 anos, com uma carreira de sucesso, sem cunhas, sem ajudas, eu era descartável e estava a ser descartada. De tudo, o que mais me custou foi a displicência de algumas pessoas. As que verdadeiramente me queriam tramar, as que foram más de forma ativa, já nem me surpreendiam. Mas as que simplesmente ignoravam foram uma dura traição. Mais do que a mim, à humanidade de cada um. Perguntei-me várias vezes como era possível ver o que me faziam e continuar a dizer «bom dia» como se nada fosse. Foram três meses dolorosos. Há pessoas que dizem que gostavam de não ter nada que fazer no trabalho, mas não imaginam a afronta que isso é para o nosso ego, pessoal e profissional. Para mim, sabendo-me competente, reduzida à insignificância da não produção forçada, foi dos mais duros golpes que vivi.

Em plena batalha legal, a palavra diagnóstico voltou de novo, mas agora era a mim que me saía a fava: doença de Ménière. Descobri que já até havia perdido parte da audição. Agora ando bem medicada e os surtos da doença têm sido raros, mas já passei semanas na cama sem me conseguir levantar.

Acabei por aceitar sair da entidade empregadora com indemnização. Na altura, não tive forças para continuar. Não queria continuar ali. Trouxe uma indemnização que nunca vai pagar a humilhação a que me sujeitaram porque essa não se traduz em dinheiro. Desde 2017 que estou desempregada.

Uma pessoa pensa que por esta altura já estou habituada à palavra, mas quando ouvi diagnóstico de novo em 2019 foi como se sentisse facas a cada sílaba. A minha filha foi diagnosticada com Diabetes tipo 1. A doença implica uma série de protocolos que revolucionaram de novo a nossa vida: monotorização constante e a pesagem da comida para contabilização das calorias. Todas as noites é preciso que alguém fique de vigília para lhe medir os valores. Começo a ensiná-la a contar calorias, para que seja autónoma porque não me esqueço que também o pai e a mãe carregam diagnósticos que nos podem incapacitar. Mas a angústia de ter uma filha com uma doença assim é sufocante.

No meio de tudo isto vivemos com uma pensão de invalidez e com um subsídio social de desemprego que não esticam. Eu quero trabalhar porque sou feliz a ser produtiva, mas tenho 48 anos, o que no mercado de trabalho é uma desvantagem, e não quero nem posso ocultar a minha vida pessoal em qualquer entrevista. Tentei investir no meu currículo, fiz um MBA entretanto e agora estou a fazer uma nova licenciatura para ter mais ferramentas e quiçá montar um negócio por conta própria já que não sou material empregável. Só quero uma solução, um caminho, sinto-me perdida.

A minha mãe ajuda-me como pode. O meu pai já não me conhece. Há dias em que percebo pelo seu olhar que sabe que gosta de mim, mesmo que não consiga dizer que sou filha dele. Outras em que sou-lhe ninguém. Há uns tempos disse-lhe que era filha dele e ele, absorto, desatou a rir. Foi absurdo e dilacerante.

Quando leio histórias de superação invejo-lhes a resolução. Há anos que sinto que vivo outra vida que não a minha, a que se adivinhava normal sem incidentes de maior. Se sou feliz? Acho que sim, sei que há vidas bem piores que a minha, mesmo que às vezes não o consiga ver. Amo os meus filhos e o meu marido cuja força admiro mais que tudo. Mas sinto que a minha vida é uma equação que estou permanentemente a tentar resolver e não acho resposta. Quero muito descobrir a solução, mas, por mais tempo que passe qual matemática debruçada em cadernos cheios de números, não há maneira de lhe ver um resultado.

Texto e foto de Ana Sousa Amorim

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