Cujusque rei potissima pars principium est
«Porque a parte mais importante de qualquer coisa é o princípio», traduz-se do latim a inscrição no baixo-relevo colocado na entrada daquela que é conhecida como Maternidade Bissaya Barreto (MBB), que já teve e tem outros nomes. A frase inscrita refere-se ao conceito de maternidade, não apenas enquanto edifício, também ao dar à luz, ser mãe e cuidar, primeiros passos essenciais para um adulto em formação.
Os edifícios do Instituto Maternal erguem-se a meia vertente entre Celas e a Praça da República, vizinhos do Parque de Santa Cruz. Foi inaugurado há 60 anos, enquanto conjunto hospitalar vanguardista, nascido da força dos ideais de Bissaya Barreto e com projecto do arquitecto Carlos Ramos, o mesmo da Escola Secundária José Falcão, passos acima. A MBB mantém-se operacional, agora com a designação de Serviço de Obstetrícia B, integrado no Centro Hospitalar Universitário de Coimbra (CHUC) – pelo menos até que o novo edifício da maternidade, diversas vezes anunciado, saia do papel. É esta saída, sem datas definidas, que faz soar diversos alarmes de receio pela perda dos valores patrimoniais destes edifícios.
No princípio era o verbo cuidar
A MBB foi a terceira maternidade do país a ser construída de raiz na zona da cidade chamada de Quinta da Rainha, em 1963, segundo Cláudia Franco, que lhe dedicou uma dissertação de mestrado, feita sob orientação do arquitecto Paulo Providência. Foi uma das últimas grandes obras de Bissaya, um conjunto complexo com várias valências a pensar na saúde e nos cuidados da mulher, erguido no seguimento de um vasto programa assistencial que construiu na região. «Naquela altura existiam pessoas assim, que se dedicavam de corpo e alma, que o tomam como missão pessoal», descreve Paulo Providência, acrescentando que «tinha uma relação difícil com a academia. Ele duplica as estruturas [assistenciais] porque não são de acordo com aquilo que ele acha que devia ser, no fundo ele acha a academia pouco empenhada, pouco exigente».

Em Coimbra, o seu programa assistencial vai revelar-se com a criação de sanatórios (o feminino, o futuro Hospital Pediátrico, e o masculino, o futuro Hospital dos Covões), hospitais psiquiátricos (Lorvão, Sobral Cid, Arnes), Casas da Criança e a MBB, que esteve provisoriamente instalada ao lado da Sé Velha, além de inúmeras outras criações.
O vasto programa culmina na criação da Fundação Bissaya Barreto (FBB), em 1958, para gerir a obra social, e do Centro Hospitalar de Coimbra (CHC) em 1971, que agrega o Hospital Geral (Covões), o Pediátrico, a MBB e o Sobral Cid. As sucessivas criações inovadoras para a sua época são acompanhadas pela arte e o detalhe artístico.
Para Bissaya, prossegue Providência, «a arte é decorativa. Na [Casa-Museu Bissaya Barreto] isso é bastante evidente. Na MBB há um primeiro sentimento [de que] imagens positivas têm efeito positivo – paisagens, figuras alegóricas, narrativas positivas – [decorando-o como] um espaço de esperança, de felicidade, enchendo-o progressivamente destas imagens». A MBB comunica urbanisticamente através de obras de arte, como o painel da Carta dos Direitos da Criança que «é uma espécie de portal de entrada», com função didáctica.
Dúvidas e anseios
A noção do valor patrimonial e a passagem do tempo levanta ansiedades. Uma fonte anónima revela que existe um «descontentamento geral» entre os trabalhadores. «Porque todos sentimos pena pelo edifício estar naquela degradação, estão a perder-se imensas obras [de arte]. É evidente que se vai construir uma nova maternidade, mas não se pode perder aquele edifício, porque é uma obra icónica para a cidade».
A juntar à visível degradação exterior dos edifícios, há muitas dúvidas que circulam sobre a função que terão depois dos serviços se instalarem na nova maternidade, sobretudo porque está bem presente o que «aconteceu com o Hospital Pediátrico». Isto é, o abandono e a sua rápida decadência, por solucionar há mais duma década. A MBB é um Hospital Amigo dos Bebés, uma iniciativa da UNICEF, em 2007. A fonte interna anónima considera que «perdemos com isso, [houve] sempre uma certa guerrilha entre o CHC e os Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC), aquelas “quintinhas”».
Ana Paula Gaudêncio, enfermeira gestora da Consulta Externa e Unidade de Intervenção Precoce, trabalha há quatro décadas na MBB. «Há tantos anos que ouço dizer que vamos sair daqui. Não sei o que vai acontecer com este espaço, só espero que não fique como o Hospital Pediátrico». António Rodrigues, enfermeiro especialista em saúde materna com 22 anos de casa, diz: «Aquilo é um edifício brutal, não podemos dizer que temos coisas a cair, não vivemos essa realidade. Temos espaço reduzido, há ali constrangimentos físicos que não se consegue contornar, temos que nos remediar. Conhecendo o que é hoje a tecnologia, as condições do trabalho de parto, o acompanhamento que é feito às grávidas, o nosso espaço já é desadequado. Agora, que ainda fazemos um bom trabalho, disso não tenho dúvidas».
Albertina Costa, assistente social reformada que trabalhou «quase 20 anos» na MBB, é directora do Ninho dos Pequenitos, uma instituição criada por Bissaya para acolher crianças em risco e que ocupa uma parte central do complexo. Comenta: «Fico incomodada quando olho para imensos baixos-relevos a deteriorar-se, coisas com imenso valor, esculturas que aparecem partidas, cada vez mais degradado. Sabemos que o projecto para a nova maternidade está aprovado, e pensamos muitas vezes o que é que vai ser deste edifício». Não sabem ainda o que acontecerá ao Ninho e aguardam por uma reunião, que já pediram, para o esclarecer.
Desconstruir mitos
Circulam algumas histórias que afirmam que o terreno e edifício pertencem à FBB e que reverterá para esta assim que a maternidade saia do espaço. Filomena Meireles, do Serviço de Apoio à Administração da FBB, clarifica: «a MBB é e sempre foi um organismo público e, como tal, propriedade do Estado, bem como o terreno em que está implantada». Já sobre a Maternidade Daniel de Matos (MDM), que acumula a sua dose de mitos, Alfredo Dias, vice-reitor da Universidade de Coimbra (UC), esclarece que o edifício é propriedade da UC e que «não existe qualquer intenção de ali instalar um hotel de charme».
Dar à luz uma nova maternidade
Teresa Almeida Santos, directora do Departamento de Ginecologia, Obstetrícia, Reprodução e Neonatalogia do CHUC, responsável pelas duas maternidades, a MBB e a MDM, refere que há «um anteprojecto [da futura maternidade] a circular internamente, que não pode ser revelado», e também não há datas concretas para a sua implementação.

Maria do Céu Almeida, directora de obstetrícia da MBB, assinala que: «Somos duas maternidades em Coimbra. Estes dois serviços, além de serem serviços independentes por estarem em pólos diferentes, adquiriram dinâmicas diferentes e têm maneiras diferentes de actuar. Estão habituados a ter uma determinada capacidade de resposta para a região que, quando nos juntarmos, fica uma mega maternidade ou então vamos ter que reduzir algumas repostas». A MBB e a MDM são, presentemente, as maternidades com maior número de partos do país. Em conjunto, refere, fazem «4400 nascimentos por ano», e são também maternidades fim de linha, isto é, com capacidade de resposta a situações mais complexas, como prematuridades.
Expectativas para o edificado
Sara Bento, que já teve dois filhos na MBB, comenta: «Eu achava bem ser uma extensão do Hospital Pediátrico, mas se calhar em Coimbra dava mais jeito ser uma mega residencial de estudantes, que é o que faz falta». Albertina Costa deixa a sugestão de uma unidade – de saúde e residencial – intergeracional. Ana Paula Gaudêncio concorda: «Seria bonito um lar, aqui no centro da cidade. Residência de estudantes, não me parece, mas podia bem ser implementado. Não se pode transformar tudo em hotéis».
A transformação do espaço em hotel é uma história recorrente, que vai correndo de orelha a orelha. Teresa Almeida Santos gostaria «que fosse para o fim para que foi construído e em que pensou Bissaya, o cuidar, adequando aos [tempos] actuais, de serviço à população. Era útil e bonito». Maria do Céu Almeida secunda esta posição, sugerindo a continuidade da funcionalidade de saúde, «para cuidados continuados, melhorando os espaços».

A fonte anónima vê como possível juntar as duas maternidades na MBB, reabilitando os espaços degradados e algumas das alas que estão desocupadas. Providência diz o mesmo: «Tinha que se estudar o programa, mas não me parece impossível construir [ali] um edifício novo de parto e internamento e manter alguns edifícios. Há algumas qualidades de localização, [como] a proximidade ao Jardim da Sereia, que é um pulmão verde. Na impossibilidade de manter aquilo como maternidade, uma hipótese era pensar num alojamento estudantil ou para professores, ligado à UC. Coimbra tem bastantes professores visitantes, o alojamento de professores não existe, é inacreditável. Falta visão estratégica da própria UC». Já António Rodrigues acha isso irrealista, o «concentrar aqui as maternidades, o espaço físico não pode ser só medido em área. Faz sentido construir um edifício novo para estarmos na vanguarda». Aguardam-se decisões para desanuviar as expectativas da cidade e de quem aqui trabalha.