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Há um ano, Coimbra recebia os primeiros refugiados da guerra na Ucrânia e testava com sucesso o sistema de acolhimento. As dificuldades em arrendar casa e encontrar trabalho começaram nos últimos meses, sem grandes soluções além da sorte, improviso e ajuda de mãos invisíveis paralelas ao serviço social público.

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Fotografia: Inês Mendes, Sónia Nunes

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É de manhã e às janelas do número 55 à rua Álvaro Anes, em Cernache, chega o sol com braços de ouro. O que há-de ser emoldura-se melhor quando há luz. Yevehn Yaroshenko desdobra as portadas para mostrar como o jacto de raios rega o chão do quarto: imagina um «céu azul» para a mãe. Serghii Puhach tem aberto na secretária o caderno preto onde vai escrevendo perguntas em português a uma mulher que ainda não conheceu e, no corredor, conta como espera ser agasalhado pelo Verão. Aninhada na cama dos pais por um cobertor aos bonecos, Sofiia Yerokhina projecta uma vivenda grande, com piscina, como a que tinha junto ao mar em Zaporizhzhia, antes de o exército russo infestar a praia com minas e forçar mais de 13 milhões de pessoas a escapar de casa, na Ucrânia.

Serghii Puhach

Na actual residência de acolhimento de Coimbra para refugiados permanecem três famílias na indecisão – tanto planeiam o regresso como a possibilidade de uma vida em Portugal. As organizações no terreno estimam que entre 500 a 700 pessoas fugidas da guerra na Ucrânia tenham procurado protecção no município, no último ano. Menos de um terço (159) bateu à porta dos serviços sociais da Câmara Municipal, que há um ano criava um banco de famílias para acolher refugiados e acertava uma parceria com o Exército para instalar no Centro de Saúde Militar um espaço de acolhimento de emergência. Durante 11 meses, passaram pela unidade 112 pessoas e todas as famílias integradas pela autarquia em casas de particulares (49, no total) já encontraram alternativas, de acordo com Elsa Branquinho, chefe do Gabinete para a Igualdade e Inclusão.

Não se sabe quantos refugiados acabaram por sair de Coimbra. Oksana Sitor Zakharuk, à frente da associação de voluntários Golden Trident, que tem ajudado centenas de ucranianos a sair do país, encontrar casa, trabalho e os documentos necessários à permanência em Portugal, diz que «não temos 20% das pessoas que vieram na altura». A autarquia não recebe pedidos de ajuda desde Setembro. O banco de famílias está suspenso e o acordo com o antigo hospital militar cessou a 15 de Fevereiro, com a transferência dos sete refugiados ao cuidado da câmara para a residência em Cernache. O imóvel, cedido pela Santa Casa da Misericórdia, tem capacidade para acomodar quatro a cinco famílias. O contrato é de seis meses, com a irmandade a assumir todas as despesas de água e luz – falta a internet e uma solução que encaixe os dois anos de serviço exigidos pelas operadoras no carácter temporário do alojamento.

Serghii Puhach estica o olho aos cabos prontos a ligar o prédio de traça antiga ao resto do mundo: quer saber de onde vem a promessa de wi-fi que se acende quando liga o computador. O cenário mais provável é continuar sem casa própria, nem autonomia. Em Abril, fugiu sozinho de Donestk, umas das frentes de guerra mais violentas e onde as temperaturas baixam a graus negativos de dois dígitos. Tem «medo do frio» e, mesmo que confesse aspirações a deputado quando apanha de surpresa as assistentes sociais num impecável sobretudo preto, do futuro espera apenas a chegada do Verão. «Eu adoro o sol», diz, de mão aberta no peito e num português que ainda não dispensa tradução nas consultas de psiquiatria.


As pernas frágeis de Yevehn Yaroshenko também devem atrasar o regresso com a mãe Mariia, de 79 anos, a Kharkiv. Os maiores agradecimentos a Portugal e Coimbra são dirigidos aos médicos que, ainda no antigo hospital militar e antes de ter o número de utente do Serviço Nacional de Saúde (SNS), começaram a curar a grave infecção que lhe atravessa os membros inferiores. Já deixou a bengala e as idas ao centro de saúde estão reduzidas a duas vezes por semana. Até conseguir que a mãe aviste do chão da Ucrânia «céu azul e paz», investe na recuperação e na esperança de um dia voltar a ser cozinheiro. «O Yevehn quer trabalhar e podemos tentar inseri-lo numa cozinha, como ajudante. Mas vai exigir que esteja de pé muito tempo. Será complicado integrá-lo», comenta Elsa Branquinho. Com Serghii Puhach a «grande preocupação» é não haver vagas nas instituições de acolhimento, acrescenta Ana Fonseca, da Divisão de Acção Social e que seguiu todos os refugiados que passaram pelo Centro de Saúde Militar.

Casa de Acolhimento, Cernache (Coimbra)

A vida em três números

Quando desliga as mãos miúdas do telemóvel e desperta para as visitas na nova morada em Cernache, Soffia Yerokhina faz um reparo que, como todos os apartes do amor, começa com uma doce chamada. Aqui: «Babushka», avó, em russo, como traduz de imediato o coro em português que se formou na sala, arrumada agora num quatro para um casal e uma criança. Soffia, no primeiro ano da escola primária, decide aproveitar a ocasião para lembrar Ludmila Khandus, de 74 anos, das lições de português por fazer. Ela, ainda nas primeiras letras, dita; a avó escreve. «Andava na escola, mas agora não quer. Pensa que está doente», aponta.

Regaço abundante de sorrisos, Ludmila Khandus tem uma doença crónica e de momento sente pena por duas coisas: não ter estado em Kiev, no final do mês passado, para o casamento da neta («com o rapaz que andava a namorar há dez anos») e continuar excluída do SNS. A medicação está assegurada porque a mãe de Olena Petryk, a tradutora que nos acompanha nesta reportagem e trabalha com a Cruz Vermelha, está a trazer os comprimidos da Ucrânia. Em Portugal desde Setembro, é a única da família que ainda não tem «os três números» – a chave de acesso a cuidados de saúde e previdência social, dada através do estatuto especial de protecção, concedido pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). O título corresponde a uma autorização imediata de residência em Portugal e atribui os números de contribuinte, de utente do SNS e de identificação na Segurança Social.

Paulo Pereira, director em Coimbra da AMI – Assistência Médica Internacional

«É a maior lacuna neste momento», indica Paulo Pereira, director em Coimbra da AMI – Assistência Médica Internacional, referindo-se aos processos pendentes no SEF, que será extinto este mês para dar lugar à Agência Portuguesa para as Migrações e Asilo. «Sem o documento do SEF, não conseguem fazer nada. Não podem aceder facilmente aos serviços de saúde; não podem pedir o RSI [Rendimento Social de Inserção, no valor de 209 euros]; não podem estudar, se forem maiores; e as empresas, por norma, não lhes dão emprego», resume Paulo Pereira.

Em Coimbra, a AMI acompanhou cerca de 300 refugiados da Ucrânia, desde o início da guerra, e «umas dez pessoas» aguardam pelo título do SEF. « Não se consegue contactá-los. Telefonemas, e-mails, não respondem. Se há algum problema, não dá para corrigir. Podem dizer são casos residuais. Mas isto não se pode ver em números. Cada vida é uma vida», aponta Paulo Pereira. Alguns refugiados acabam por desistir: o casal de médicos Nader e Arij, de 25 e 23 anos, que chegou com planos de exercer a profissão em Portugal, deve sair do país esta semana. Do SEF não há notícias. Este mês caducam também as primeiras das 58 mil protecções temporárias atribuídas no último ano, sem que a área de renovação automática no site esteja acessível. Também não está a ser possível marcar entrevistas.

Arranjar emprego é uma carga de trabalhos

No alojamento para refugiados em Cernache, há uma ausência notada: Viacheslav Yerokhina, o pai de Soffia. Não está em casa, nem nas aulas de português. «Está a trabalhar», informa, feliz, a mulher, Tamila. É coisa recente: começou este mês, como ajudante de electricista/canalizador, está a ganhar o salário mínimo e acertou boleia para a empresa com outros trabalhadores da freguesia. No primeiro dia, estava «ansioso» por causa do «problema» da língua, mas «adorou» – o emprego, os colegas, o patrão. «É a trabalhar, no contacto directo, que se aprende», incentiva Olena Petryk, que chegou há 20 anos e fala português, sem cursos, nem mediadores. «Mais de dez anos num restaurante», diz, como quem passa uma receita.

Olena Petryk

Logo após a invasão russa, o Governo criou uma plataforma para dar emprego a quem procurasse refúgio em Portugal. O sistema continua activo e, em Coimbra, soma 24 vagas, em áreas diversas, não especializadas: limpeza, construção, cuidados familiares e transporte de mercadorias. O trabalho é, no entanto, um «grande problema». «A desculpa é sempre a língua. É uma razão válida, mas não é tudo. Quem não fala português pode não atender ao balcão, mas pode ir para a reposição, para a limpeza», contrapõe Paulo Pereira, à frente da AMI há mais de 20 anos e que, pela primeira vez, montou um curso de português para estrangeiros, com tradutor e recurso a voluntários.

Desde Maio, 97 pessoas passaram pelas aulas, a maioria refugiados ucranianos – mas já começaram a chegar também migrantes. Há ainda o curso do IEFP (Instituto do Emprego e Formação Profissional), no Centro de Formação da Pedrulha, que confere certificado. Nos planos de integração faltou uma ressalva: a ideia de retorno e o trauma da guerra podem não deixar espaço para aprender novas línguas ou trabalhar. «Fizemos algumas coisas erradas. A guerra rebenta a 24 de Fevereiro, começam a chegar as primeiras pessoas em Março e, semanas depois, dizemos: ‘Temos aqui vagas’. Quem deixou marido, pai, mãe, viu a casa destruída, não morreu por milagre e tem a vida suspensa dentro de uma mala não se estabiliza numa semana. As coisas têm o seu tempo. O IEFP devia ter sabido esperar», aponta Paulo Pereira, ao manter que «as empresas fazem parte da solução».

Yevehn e Mariia Yaroshenko

Ao terceiro dia de guerra a família Yerokhin vivia já com a ameaça de os soldados russos entrarem lar adentro e levarem o homem da casa. Viacheslav não desertou: saiu da Ucrânia com um atestado de inaptidão física. As filhas mais velhas, de 23 e 26 anos, estão em Kiev. Não querem abandonar os maridos. Svitlana Kovaleskaa vive em Adémia; o namorado, na Ucrânia, retido pela lei marcial. Têm um filho de seis anos, Leo, que vai à escola em Trouxemil. «Os autocarros são do pior. Venho de Kiev: se não apanhas um, há logo outro. Também não temos tantas greves. Gosto de Coimbra, gosto de Portugal, mas não é fácil quando estás sozinha com uma criança», diz, em bom português. Está sem trabalho: aguenta as contas e tem uma casa graças à ajuda «de amigos e de pessoas que compreendem» que pode «pagar depois».

«Arranjar emprego é uma situação ingrata. Não é porque não queiram fazer limpezas, trabalhar num café ou numa área fora da sua especialidade. São os horários. Para uma mãe sozinha, com crianças pequenas, é impossível trabalhar ao fim-de-semana ou por turnos», indica Oksana Sitor Zakharuk, quando começa a explicar porque a «maioria» dos refugiados acabou por ir embora. A rede pública de jardins-de-infância «consegue dar resposta» em zonas mais afastadas do centro, mas, mesmo com as comissões sociais das juntas de freguesia a subsidiar as deslocações, «tem sido impeditivo», confirma Elsa Branquinho. O problema é estrutural e agrava-se no caso das creches: «Muitas famílias portuguesas também se vêem obrigadas a recusar trabalho».

Svitlana Kovaleskaa

Com o apoio da Santa Casa e dos serviços sociais da câmara, a família Yerokhin começa agora a juntar os primeiros salários de Viacheslav na expectativa de arrendar uma casa para os quatro – Tamila, numa corrida para aprender português e poder então candidatar-se a uma vaga para esteticistas, antecipa já que será nos arredores da cidade, «onde é mais barato». Entenda-se: 2.500 euros de entrada.

Seis meses de rendas em avanço

Paulo Pereira viu; ninguém lhe contou: «Fui com refugiados da Ucrânia arrendar uma casa antiquíssima, dessas que os estudantes andam a partir. 500 euros por mês. E foram notas de 50, 100 – ali, três mil euros de entrada». Por Coimbra, há senhorios a pedir entre quatro a seis rendas adiantadas, testemunha também Oksana Sitor Zakharuk, mediadora imobiliária. As condições são mais exigentes para quem tem risco financeiro e, no caso dos refugiados, tornam-se, com frequência, impossíveis: «As pessoas precisam de ver que os refugiados não têm capacidade para tantas rendas adiantadas, nem têm fiador. A câmara dá apoio a algumas famílias até dois meses, mas, por vezes, nem assim dá para fazer contrato». Em Coimbra são mais as casas do que as pessoas: de acordo com os Censos de 2021, há no município cerca de 16 mil alojamentos familiares vagos. «Temos casas fechadas e pessoas que estão a pagar 450 euros por uma garagem. É desumano. A autarquia devia adquirir os imóveis devolutos, arranjá-los, e colocá-los no mercado de arrendamento», defende.

Olena Petryk e Ludmila Khandus

A medida, refere José Manuel Silva, presidente da CMC, é impraticável: «A capacidade de investimento próprio da câmara está praticamente eliminada». O autarca aponta como alternativa mais imediata o departamento de habitação social, com 800 pedidos em lista de espera. Ainda em Fevereiro, a câmara anunciou um investimento de 45 milhões na construção de 268 fogos em Taveiro, prevista para 2026. À cidade continuam a chegar refugiados, como dois estudantes de medicina que bateram à porta da AMI e estão numa residência paga pela Segurança Social. Outros vão encontrando abrigo na rede de contactos que se estabeleceu no município, paralela às instituições.

«Coimbra passou a estar nos grupos de WhatsApp de refugiados. Destacou-se pela capacidade de acolher», constata Paulo Pereira, que situa a fase de acolhimento, nos primeiros seis meses. «O abraço que as pessoas precisam quando estão numa situação de fragilidade – esse foi o nosso grande recurso. As famílias de acolhimento funcionaram muito bem, a Segurança Social deu logo resposta, atribuíram-se médicos de família e escolas», avalia. Os obstáculos, continua, revelaram-se na «fase de integração, que terá começado em Setembro/Outubro». A pergunta foi: «O que vamos fazer com estas pessoas? Não podem estar na fase de acolhimento por cinco anos».

Ana Fonseca, Divisão de Acção Social da Câmara Municipal de Coimbra

«A integração não foi fácil – a língua, a cultura. Não estávamos preparados para isto, mas acredito que esta experiência nos está a ensinar muito», conclui Elsa Branquinho. «Foi tudo novo para nós, mas fomos resolvendo os problemas», retoma Ana Fonseca, que recua aos primeiros contactos com os refugiados feitos através do tradutor automático do telemóvel. Lembra-se também dos militares que ao fim-de-semana, quando ela saía do centro, não deixaram ninguém sozinho e foram sempre «cinco estrelas». Há ainda aquele momento em que a equipa da câmara «arranjou vários portáteis» e passou «quase toda para o hospital militar» para pedir documentação ao SEF. «Acção social é isto: trabalhar directamente com as pessoas», remata. Os entraves à integração – vertidos no acesso ao emprego e à habitação, e na aprendizagem do português – «não quer dizer que algo falhou», acautela Oksana Sitor Zakharuk. «Ninguém tinha o objectivo de constituir uma vida cá», lembra. Portugal é passagem, sem tempo contado.

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