A Lufapo chegou a ter mais de mil funcionários a laborar na sua engrenagem. Tinha uma escola primária, uma creche, casas para operários, laboratórios, campo de futebol. Foi uma das primeiras unidades industriais a instalar-se na zona norte da cidade, vinda do Arnado, exígua para unidades pesadas, inaugurando a zona industrial da Pedrulha e Loreto em 1923. Já existiria uma cerâmica anterior, de 1915/19. Em 1929 foi adquirida pela Companhia das Fábricas Cerâmica Lusitânia, que se transformaria em Lufapo nos anos 40, a partir das palavras Lusitânia, Faianças e Porcelanas e chegou a ser uma das mais importantes do país.
A Dona Alice já testemunhara as suas breves memórias da Lufapo, de idade que se confunde com a sua. Ao falir na década de 70, a posse do vasto complexo fabril ficou para a Câmara Municipal de Coimbra (CMC), que o alienou a uma empresa de construção, que edificou a Urbanização do Loreto onde antes havia um barreiro e o campo de futebol. A fábrica teria dezenas de edifícios e chaminés e, após cinquenta anos a laborar a todo o vapor, restam as ruínas da escola e um dos edifícios da antiga fábrica, onde agora se concretiza o Lufapo Hub, o culminar desta história.
Hub criativo
O edifício manteve-se vazio durante alguns anos até que em 1987 acolheu o recém-criado Centro Tecnológico da Cerâmica e do Vidro (CTCV), entidade que presta apoio técnico e laboratorial ao sector das empresas de cerâmica e vidro de todo o país. Apesar de o vidro não ter tradição em Coimbra, e haver maior concentração de indústrias cerâmicas noutras regiões, a sua localização em Coimbra foi «uma questão de oportunidade», salienta Ana Carvalho, engenheira química que se apresenta como coordenadora e facilitadora do Lufapo Hub. O CTCV cresceu e o local tornou-se pouco prático em termos logísticos, pelo que, na última década, foi-se mudando progressivamente para o Coimbra iParque, até deixar de ter qualquer actividade na antiga fábrica.
No final de 2021, recorda Ana Carvalho, «deram-me a incumbência de dar nova vida a estes edifícios. Tentei puxar muito pela área criativa, a administração queria empresas de software. Lá consegui convencê-los aproximando à ideia da New European Bauhaus (NEB). Criámos este conceito que é uma incubação e acolhimento de empresas, de startups e scaleups. Temos, por exemplo, aqui sedeada a empresa que está a fazer o Metrobus e a Estação Velha. Temos cerca de 30 empresas aqui instaladas. Depois temos os criadores e algumas associações».
Para os criadores as rendas são mais em conta do que para as empresas, estabelecendo «não igualdade, mas equidade» nos valores, comenta Ana Carvalho, num reflexo de razoabilidade perante os custos de produção e a escala de cada entidade, assim como a dimensão do espaço de trabalho utilizado. As rendas mais elevadas para as empresas permitem rendas mais acessíveis para os criadores, artesãos e associações. Neste projecto orgânico com pouco mais dum ano, o foco é receber profissionais criativos de todos os tipos.
Sustentável, inclusivo, belo
São estes os três princípios NEB que guiam o projecto. Sandra Carvalho, a recepcionista que simpaticamente conduz quem chega, é utente da Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental (APPACDM), com quem a Lufapo tem um protocolo e que também faz a manutenção do espaço verde no interior dos edifícios. A imagem gráfica foi criada por Sílvia Pinto, reverberando a estética original Bauhaus.
O atelier de co-criação, um espaço de partilha cerâmica, está equipado com forno e roda de oleiro e irá receber uma impressora 3D cerâmica. Têm um protocolo com o Cearte, que já comentámos, que identifica e encaminha ceramistas que precisem de apoio e espaço para trabalhar. No Lufapo aperceberam-se de que os artesãos e artistas não têm muito espaço para trabalhar em Coimbra e aqui encontram condições e valores acessíveis para o fazer.

«Isto tem que ser orgânico», enuncia Ana Carvalho, enquanto deslizamos pelos corredores e salas, ornados das obras das ceramistas residentes, «temos que perceber onde as pessoas se sentem bem, quem é que nos procura, e vamo-nos adaptando. Não temos valores rígidos, temo-nos definido assim».
Nos espaços que se sucedem, de diferentes dimensões e ocupados pelos mais variados utilizadores, a única constante é a luz. Um manto de luz preenche todo o espaço, convidando à criação e sem se impor em demasia. Para já, de artistas e artesãos instalados, Ana Carvalho vai enumerando três ceramistas, uma galega, uma peruana e outra brasileira; um pintor israelita e outro português, David Sarmento, que já entrevistámos sobre outro projecto. A chronospaper veio da Baixa para aqui e absorveram também algumas pessoas do COL.ECO, estrutura colaborativa da Baixa extinta recentemente.

Recentemente estabeleceu-se a associação Catrapum Catrapeia e uma fábrica de sabão e velas aromáticas. A visão divaga pelo espaço e encontra uma empresa de traduções, depois uma empresa de engenharia, a seguir a associação Inclusão ConTacto, que têm um atelier de jogos de tabuleiro. Ana Carvalho prepara uma grande divisão que irá receber músicos e está a ultimar um espaço colaborativo para que todos possam realizar workshops. «Isto tem dias», conta, «nem sempre está a fervilhar. Alguns [criativos] estão o tempo todo aqui, outros parcialmente. O negócio é deles, não interferimos, nós tentamos estimular».
Apetece trabalhar aqui
Somos recebidos no atelier de co-criação pela Claudia Cid, ceramista galega estabelecida em Coimbra. O espaço é luminoso, apetecível; delimitado por uma banca de trabalho e com estantes recheadas de peças cerâmicas e olaria.

O seu projecto cerâmico chama-se U-la Harda, que bebe muito da sua aprendizagem tradicional na aldeia oleira de São Pedro do Corval (integrante da Rede de Aldeias Bauhaus). Partilha o espaço com Juliana Marcondes (com o projecto Ceramicar-te) e com Yenny Aranguri, brasileira e peruana, respectivamente. Yenny é de Cuzco e aprendeu técnicas tradicionais de cerâmica com tribos amazónicas. Outra ceramista, Paolletti Avellar, está de regresso ao Brasil.
Claudia acrescenta: «Aprendi [olaria] em Lisboa, estudei com a Juliana no Cearte e em São Pedro do Corval redescobri a cerâmica, lá é muito intenso». Realizam oficinas de olaria regularmente num espaço contíguo ao atelier de co-criação, num espírito intenso que emana dádiva e partilha.
Encontramos Wesley Souza a preparar o seu espaço para produzir a sua linha de sabonetes artesanais La Boutique, vindo da extinta COL.ECO. Um par de semanas e estará lançada a produção, com Catrapum Catrapeia e chronospaper como vizinhos.
A equipa da última comenta: «Lufapo Hub simplesmente aconteceu. Aproveitámos uma sugestão e acreditamos no potencial deste espaço e nas possíveis parcerias que irão nascer em breve. Como todos os embriões, têm de se interligar, interagir e criar algo de inovador e diferente. Fizemos formação, criámos novos projectos, que irão ser implementados em 2024. Ainda estamos a preparar o nosso regresso ao mercado de trabalho. Quando fechámos [a loja e oficina física], na Baixa, tínhamos consciência do que íamos perder, mas também do que iríamos ganhar. E isso foi principalmente tempo de reflexão e de decisão».

Avi Sabah é um pintor israelita com obra e presença em vários países. O seu atelier está carregado de obras em processo que pontilham as paredes, o chão. Coimbra surgiu-lhe inesperadamente no percurso, com uma oferta para a mulher realizar o pós-doutoramento na Universidade de Coimbra (UC). Veio a família e Avi encontrou no Lufapo um espaço que lhe agrada: «Coimbra é bom para mim, dá-me tempo e calma; preciso disso para pintar. O Lufapo Hub é perfeito para mim, tem bons espaços, luz e pessoas».
Acervo
Nas cerâmicas antigas fazia-se de tudo, inclusive cerâmica técnica, como isoladores ou canalização. Quando o Lufapo Hub foi criado, foram contactados por pessoas com memórias e objectos da antiga fábrica. Um desses contactos foi do professor Paulo Trincão, a dar conta dum conjunto de objectos pertencentes à Lufapo, guardados nas catacumbas do Colégio das Artes.
«Perguntou se queríamos, eu fui com um camião e trouxe aquilo tudo», adianta Ana Carvalho, «quando o CTCV veio para aqui, estava tudo vazio, tinham levado tudo. Na década de 70, o professor Mário Silva andou a recolher espólio para o Museu Nacional da Ciência e da Técnica». Para esse museu, antecessor do actual Museu da Ciência da UC, seriam estes elementos que se mantiveram intactos, pois doutro modo estariam dispersos ou perdidos, mas nunca foram integrados na colecção.
No chão de fábrica, no piso térreo do Lufapo Hub, este rico acervo espera por tratamento museológico. Guardam aqui equipamentos, moldes para serigrafia e pintura, amostras, desenhos com motivos religiosos, sinais de trânsito e painéis publicitários, cerâmica técnica, pigmentos, caixas e mais caixas com espólio. É lançado um desafio no botão lateral no topo do artigo para reunir mais objectos.
Reflexões
O Lufapo Hub não tem qualquer financiamento externo, tem protocolos e parcerias estabelecidos (por exemplo, com Assunção Ataíde, da Agência para a Promoção da Baixa de Coimbra) e Élia Ramalho do Atelier A Fábrica. O CTCV dedica uma parte do seu financiamento ao Lufapo.
«A UC não está muito ligada ao CTCV», lamenta Ana Carvalho. «A própria cidade desconhece a sua existência. Estamos muito mais ligados a outras cidades e universidades, como a Universidade de Aveiro, [com quem] temos uma ligação quase umbilical, do que com a UC, infelizmente. Tem havido sempre, ao longo dos anos, uma tentativa de aproximação, [mas] tem havido um afastamento da UC ao sector industrial». Talvez, arrisca-se, seja preconceito em relação à indústria.
Farol Bauhaus
Ana Carvalho gostava que este edifício fosse um lighthouse Bauhaus, um farol. Nesse processo de agarrar ambições, lança outras ideias. Registaram a marca Lufapo, para recuperar o nome e despertar sentimento de pertença. «A ideia», explica, «era ir buscar as peças da marca e criar uma rede de indústrias criativas em Coimbra. Não apenas com a marca Lufapo, que é pouquinho, [mas ir] buscar outras marcas que existiram em Coimbra». As camisas Alvoeiro, por exemplo, que se produziam onde está agora o Atelier A Fábrica. Ou os sabões Marthas e outras. Querem recuperar essas marcas, não para fazer cópias do passado, mas para as unir e criar novos produtos e peças.

Têm um projecto para um livro sobre a história da Lufapo e estabeleceram uma parceria com a CMC, marcando presença com um espaço na Montra das Artes & Ofícios, que acontece aos terceiros Domingos de cada mês, nas ruas Ferreira Borges e Visconde da Luz. No sótão do edifício pretende-se criar um espaço com residências artísticas, cerca de 14, com espaços comuns. Este projecto está em fase de análise na CMC. No piso térreo, ainda por reabilitar, querem manter o pé direito alto e instalar pequenas indústrias criativas. O objectivo é que os criadores desenvolvam coisas em conjunto, depois vão percebendo como funciona. «É orgânico», remata Ana Carvalho.