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Paula Moura Pinheiro: «Irrito-me com Coimbra porque só nos irritamos verdadeiramente com aquilo que é importante para nós»

A jornalista esteve em Coimbra para gravar um Visita Guiada e falou sobre a cidade. Nas respostas encontramos as várias camadas da mulher que formula as questões inquietantes sobre o património português.

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Fotografia: Mário Canelas, Francisco Oliveira

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Num Domingo de Novembro, nasceu em Coimbra Maria Paula Serra Camilo de Moura Pinheiro. A mãe estudava Direito na Universidade, era uma das raras mulheres neste curso e mais raro ainda era o facto de ser casada e ter uma bebé. Aos cinco anos, Maria Paula saiu da sua terra natal, foi com a família para Lisboa, aí frequentou Comunicação Social na Universidade Nova e tornou-se uma jornalista com percurso assinalável: repórter, entrevistadora e cronista; na televisão e na rádio como autora, editora e apresentadora. Expresso, Grande Reportagem, Público, SIC, RTP, Antena 1, escreveu seis livros e, em Abril, estreia a 11ª temporada do programa Visita Guiada que, desde 2014, tem colecionado as melhores histórias da História portuguesa.

Paula Moura Pinheiro esteve em Coimbra para gravar um episódio sobre o Mosteiro de Santa Cruz e falou sobre esta cidade. É nessas respostas que encontramos as várias camadas da mulher que formula as questões mais inquietantes sobre o património português, uma divulgadora científica que quer fazer com que as pessoas compreendam melhor a realidade social em que vivem.

Vilma ReisA linha do tempo do Visita Guiada passeia constantemente por Coimbra: Museu Machado de Castro, Convento de Santa Clara-a-Nova, a Universidade, o Portugal dos Pequenitos, o Museu da Ciência, a Sala dos Capelos – esta cidade menina e moça tem um lugar especial?

Paula Moura Pinheiro – Para quem está interessado na História de Portugal, Coimbra é nevrálgico, tem um protagonismo imenso e não é só a Universidade. Estamos agora a realizar um programa sobre o Mosteiro de Santa Cruz, que funcionou ininterruptamente durante 700 anos, e foi fundado em 1131, antes mesmo de Portugal existir como reino independente. Foi fundado com a ajuda de D. Afonso Henriques, que só quase 50 anos depois alcançou o seu objetivo final, que era o reconhecimento papal para Portugal como um reino autónomo e independente. Portanto, quando estamos a falar da história deste mosteiro estamos a falar da estratégia política montada por D. Afonso Henriques, quando ainda era um aspirante a rei, quando ainda estava a arquitectar Portugal, para chegar a ser o que foi.

«Coimbra é um manancial incrível de histórias sobre a História e qualquer português que queira saber quem é ou, mais propriamente, que deseje compreender o percurso da comunidade a que pertence, tem que parar nesses momentos-chave, pelo menos olhar com atenção e tentar compreender. O aspecto biográfico, de eu ter aqui nascido, não pesa, com franqueza, porque mesmo que eu tivesse nascido em Abrantes ou em Lagos, Coimbra teria sempre a importância que tem.»

Não é por acaso que D. Afonso Henriques escolheu sepultar-se no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Este mosteiro foi um passo muito importante na sua estratégia de ascensão ao poder. Com a extinção das ordens religiosas, em 1834, o Mosteiro de Santa Cruz sofreu um golpe capital: foi vandalizado e desmembrado. Depois, nos anos que se seguiram a 1910, durante o ambiente revolucionário da implantação da República, a destruição do que ainda restava do antigo Mosteiro de Santa Cruz continuou. O mau estado de conservação em que se encontra hoje não pode fazer-nos esquecer que este lugar foi um braço constitutivo daquilo que veio a ser Portugal. E só para referir mais um episódio central da importância da cidade de Coimbra, recordo as Cortes de 1385, as Cortes que instauraram a dinastia de Avis.

Coimbra é um manancial incrível de histórias sobre a História e qualquer português que queira saber quem é ou, mais propriamente, que deseje compreender o percurso da comunidade a que pertence, tem que parar nesses momentos-chave, pelo menos olhar com atenção e tentar compreender. O aspecto biográfico, de eu ter aqui nascido, não pesa, com franqueza, porque mesmo que eu tivesse nascido em Abrantes ou em Lagos, Coimbra teria sempre a importância que tem.

VRMas nasceu aqui.

PMP – Eu nasci aqui, embora a origem dos meus pais seja na Beira Baixa. Como acontecia durante muito tempo, os beirões quando iam para a faculdade vinham para Coimbra e a minha mãe veio fazer Direito para aqui no início dos anos 60. No segundo ano do curso, o meu pai vem ter com ela e casaram-se, em Santa-Clara-a-Nova, e eu e a minha irmã nascemos cá. Por ter dois bebés, a minha mãe demorou mais tempo a acabar o curso e por isso vivemos cá até aos meus 5 anos, quando ela se formou. Então todas as minhas memórias da primeira infância são de Coimbra, de ir dar pão aos patos naqueles laguinhos na Sá da Bandeira, os passeios no Jardim Botânico.

A maioria das estudantes naquela época vivia em quartos alugados ou em «repúblicas», mas o meu pai já trabalhava e por isso eles tinham um apartamento onde recebiam, como é natural, os amigos, muitos deles estudantes da Universidade de Coimbra. Isto tudo para contar que uma vez, no contexto de outro programa que não o Visita Guiada, eu tinha combinado entrevistar uma pessoa, que só conhecia pelo telefone. No dia da gravação, chega o dito senhor, um eminente advogado que comparecia na qualidade de secretário de estado ou de ministro, algo assim, e quando se apresenta, com toda a gente à volta, diz-me: «Dei-lhe muitas vezes banho!» Eu ia morrendo, fiquei completamente perplexa, como todos os presentes. «Como deu-me banho?» Faz-se um breve silêncio e ele respondeu «Dei sim. Eu era amigo dos seus pais em Coimbra e estive muitas vezes em sua casa. Quando a Paula nasceu era um ai-Jesus!».

Na primeira metade dos anos 60, a minha mãe era uma das poucas mulheres em Direito e uma das únicas que casou e teve filhos durante o curso, portanto nós, eu e a minha irmã, naquele contexto, éramos uma raridade. Vinham os amigos e os colegas de faculdade lá para casa brincar connosco. Estas referências a Coimbra estão sempre a surgir-me.

Como sabe, tenho uma vida profissional que exige que esteja sempre a viajar pelo país e, por isso, tenho por hábito declinar todos os convites laterais que me dirigem, como a todos os jornalistas, para moderar mesas, comunicações, participações em eventos – digo sempre que não. Mas em 2008 não pude recusar o convite do reitor Seabra Santos para integrar o júri do prémio da Universidade de Coimbra. Foi uma decisão afectiva, naturalmente.

Muitas das fotografias da minha primeira infância foram tiradas no pátio da torre do relógio da Universidade de Coimbra. Lembro-me lindamente da rua em que vivia, lembro-me da primeira vez que fui ao cinema, fui ver a Branca de Neve, com o meu pai, no Tivoli na Avenida Emídio Navarro e foi uma experiência fortíssima. Esta cidade está muito presente em mim e é um território que é família, não é familiar, é família, entende? E às vezes irrito-me com Coimbra porque só nos irritamos verdadeiramente com aquilo que é importante para nós.

VR – A Paula já trabalhou em jornais, revistas, rádio e televisão. Qual o melhor formato para o seu jornalismo?

PMP – As pessoas vêem-me na televisão, mas o meu processo de trabalho é mais parecido com o da imprensa não-diária, onde comecei. O meu método de trabalho passa pelo texto escrito. Invisto imenso tempo na leitura e na escrita, no processamento e na formulação, trabalho as perguntas com antecedência, penso na estratégia narrativa, assumo o recuo da imprensa não-diária. Comecei na imprensa, onde estive muitos anos, passei para a televisão e fiz rádio. A rádio era o meio que, no início, menos me interessava, mas aprendi a gostar imenso de rádio. Hoje, vejo-me como uma jornalista que foi criada na imprensa e que trabalha em televisão.

VR – Carlos Heitor Cony foi um jornalista brasileiro, que também era escritor, disse uma vez que «Jornalista é peixinho de aquário: colorido e faz gracinhas. O escritor é o peixe de mar profundo. O sol não entra, mas ele tem o oceano todo». A Paula também frequenta este oceano do Cony?

PMP – Não me vejo como escritora nesse sentido. Sou uma jornalista que publicou livros. Tenho muito presente o que é a exigência da literatura, pois trabalhei grande parte da minha vida na dita área do jornalismo cultural (uma expressão com que não simpatizo – podíamos falar nisso, mas se calhar este não é o sítio próprio para falar nisso), fiz inúmeras entrevista a escritores, artistas visuais, arquitetos, músicos, produtores de cultura no sentido convencionado do termo. Além disso, sou uma leitora voraz desde que me lembro de saber ler e, portanto, tenho demasiado respeito pela produção literária para me considerar uma escritora. Sou uma jornalista que produziu textos jornalísticos mais longos que saíram em livros. É só isso.

«O Visita Guiada não é, deliberadamente, um programa de denúncia directa, acho que as pessoas estão muito cansadas do jornalismo de shaming. A nossa estratégia é outra: conheçam, compreendam, defendam o que testemunha a vossa História. Espero que quem vir o programa que estamos a realizar em Santa Cruz de Coimbra perceba que é inaceitável o estado em que se encontra aquele património.»

VREm 2019 a Paula escreveu um texto intitulado Coimbra: e que tal uma ideia para a cidade? onde dizia «regresso de comboio a Lisboa e recapitulo devagar muitas das cidades portuguesas que pude conhecer melhor ao longo dos últimos cinco anos graças ao Visita Guiada. Concluo que Coimbra, onde estive a trabalhar nos últimos três dias, é uma das cidades mais mal geridas do país. Há décadas que assim é» e perguntava «como é possível que uma cidade que tem algum do melhor património nacional e uma tradição de dignidade de quase mil anos pode ser tão maltratada?».

PMP – A Igreja de Santa Cruz, bem como o que ainda resta do antigo mosteiro, precisa urgentemente de uma intervenção. Saí de Coimbra aos cinco anos, tenho boas memórias desta cidade, mas de cada vez que volto fico em estado de choque. Não estou a falar de nenhuma tutela em particular porque, no caso da Santa Cruz, como em tantos locais, a tutela está repartida por várias instituições. Não me interessa atribuir culpas, mas é óbvio que há uma falta de vontade em organizar vontades para a valorização do património incrível que a cidade tem. A Sé Velha com os carros estacionados em cima da escadaria é um escândalo. O Claustro da Manga, o chamado Jardim da Manga, aquilo é um escândalo: o que é aquele café ali? Uma das maiores pérolas do Renascimento português está enquadrada por cartazes com o preço dos hambúrgueres?! Ouça, escreva aí: é um escândalo.

Nem ponho aqui em equação o fato de ter nascido nesta cidade e de amar esta cidade, apanho fúrias em Coimbra porque esta cidade goza do privilégio de uma concentração extraordinária de património extraordinário que, em muitos casos, não tem sabido honrar. É desagradável estar com comparações e não vou fazê-lo, mas vejo exemplos impecáveis pelo país. Dizem-me sempre que existe uma tensão histórica entre os diversos poderes em Coimbra e que nunca se articularam bem e que sempre foi um diálogo muito difícil. Também estou ciente de que Coimbra tem uma orografia difícil e de que não é fácil intervir na malha medieval. Mas existe tanta inteligência concentrada aqui! Durante séculos, Coimbra foi a capital da inteligência em Portugal, como é que esta negligência é possível?!

VREm 2014, quando estreou o Visita Guiada, contou que uma jornalista a interpelou, dizendo: «Acha que, no estado em que está o país e a política cultural em Portugal, este é o momento para estar a fazer um programa sobre património?» E a Paula respondeu que «dar visibilidade à efetiva longevidade do nosso povo, à efetiva densidade da nossa identidade cultural promove uma cidadania mais qualificada e exigente». Mas a pergunta é: a Coimbra Coolectiva pratica o jornalismo de soluções e eu acredito que a Paula também o pratica, concorda?

PMP – O Visita Guiada é um programa de televisão que parte do Património para chegar à História. Para chegar a contar a História do território que é hoje Portugal, porque nós abrangemos um arco temporal que começa milhares de anos antes da existência do reino de Portugal. O nosso arco temporal começa na Pré-História e vai até aos anos 50 do século XX. Uma das preocupações que tenho no programa é colocar as coisas em contexto internacional, evitar as leituras paroquiais, levantar a cabeça da horta e olhar para o horizonte, tentar perceber o que é que se passava numa escala maior à época daquilo que estamos a tratar. Isto é a apresentação básica do programa.

«A Sé Velha com os carros estacionados em cima da escadaria é um escândalo. O Claustro da Manga, o chamado Jardim da Manga, aquilo é um escândalo: o que é aquele café ali? Uma das maiores pérolas do Renascimento português está enquadrada por cartazes com o preço dos hambúrgueres?! Ouça, escreva aí: é um escândalo.»

Agora, qual é a intencionalidade do Visita Guiada? É, evidentemente, partilhar conhecimento de uma forma rigorosa, mas com uma linguagem acessível a qualquer pessoa. É levar os melhores investigadores, o melhor pensamento, o melhor trabalho de construção do conhecimento sobre a história deste território ao maior número possível de pessoas. Tenho a convicção de que esta partilha qualifica os cidadãos. É como aquela expressão do contexto clínico: «consentimento esclarecido». Se no exercício da sua cidadania as pessoas tiverem consciência da História, se calhar tomam decisões mais esclarecidas relativamente à gestão atual da coisa pública. É relevante, por exemplo, saber que no séc. XIII, poucos anos depois da Magna Carta ter imposto limites ao exercício de poder do rei de Inglaterra, o povo português passou a ter representação nas Cortes. É o germe da democracia em plena idade média! Quantos portugueses terão a noção disso? Claro que, como sabemos, houve muitos retrocessos, mas no séc. XIII não estávamos desfasados daquela que é considerada a mais antiga democracia da Europa. O que é que aconteceu para termos chegado aqui como estamos?

O Visita Guiada não é, deliberadamente, um programa de denúncia directa, acho que as pessoas estão muito cansadas do jornalismo de shaming. A nossa estratégia é outra: conheçam, compreendam, defendam o que testemunha a vossa História. Espero que quem vir o programa que estamos a realizar em Santa Cruz de Coimbra perceba que é inaceitável o estado em que se encontra aquele património. É esse o nosso contributo para a cidadania ativa hoje: quanto mais gente compreender a dimensão do que aquelas paredes testemunham, mais gente estará apta a pressionar quem tem a obrigação de agir.

VR – Escreveu: «ser jornalista foi o que encontrei de mais parecido com um passaporte».

PMP – Se eu não fosse jornalista nunca teria tido a hipótese de ter conhecido – e de continuar a conhecer – tantas pessoas tão fascinantes. Ser jornalista é o álibi perfeito. E quando digo «pessoas fascinantes» não estou só a falar da Sophia de Mello Breyner Andresen, estou a falar de pessoas incríveis que conhecemos nos sítios mais improváveis, pessoas sem visibilidade no espaço público, pessoas discretas – detesto a expressão anónimo, toda a gente tem nome. É por isso que gosto tanto de Arqueologia, porque, ao contrário da disciplina História, que se constrói na pista dos documentos, a Arqueologia segue a prova das pedras, a prova do objeto partido que se encontra lá no fundo, do resto, do resto, do resto que era o quotidiano das pessoas que não tinham poder nem protagonismo e que não constam dos documentos: os documentos que ficaram para a História foram produzidos pelos vencedores, pelos poderosos. A Arqueologia dá também visibilidade àqueles que não tiveram poder, interessa-nos isso.

VR – E em relação ao futuro, o que quer para a sua vida?

PMP – (Risos) Respondo com uma frase que ouvi a Agostinho da Silva: «Não faças planos para a vida, para não estragar os planos que a vida tem para ti». Estou sempre tão apaixonada pelo que estou a fazer que não tenho espaço nem tempo para pensar no futuro. O que é ótimo, porque a vida é o que acontece enquanto estás a fazer planos (risos). Vivo absorvida com o que me é proporcionado e tento tirar o máximo partido de cada momento.

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