Da teoria à prática, o debate sobre mobilidade continua a revelar uma cidade a duas velocidades no desenho de centros urbanos planeados, com prioridade para quem anda a pé, de bicicleta ou de transportes públicos. De um lado, estão os académicos, certos que a mudança só acontece se houver «coragem política» para cortar o peso do automóvel nas ruas; do outro, a classe política, com provas de que mexer em hábitos diários e tirar o estacionamento à porta de casa e do trabalho significa contestação e perda de votos. Na via do meio, surge a definição de zonas com limites de velocidade capazes de devolver o espaço público às pessoas — é por aqui que avança Coimbra.
Alterar o desenho urbano para aumentar a qualidade de vida é a ideia a unir as pontas do debate Coimbra, the right place to live (Coimbra, o lugar certo para viver), que moderámos a convite da Câmara Municipal de Coimbra (CMC), no âmbito da Semana Europeia da Mobilidade. A smart talk desafiou profissionais dos «dois lados da barricada», sector privado e público, a pensar as ruas como bem comum e onde os cidadãos são incluídos no planeamento.

As nossas rotinas nem sempre permitem imaginar o espaço público de outra maneira, mas José Carlos Mota, professor e investigador na área da mobilidade, ajuda-nos a desmontar esta ideia de que o tema é só para especialistas. «A cidade do futuro pode ser a cidade que já tivemos», diz, em jeito convite para uma viagem até ao bairro da Solum, nas décadas de 1970 e 1980. «Tínhamos tudo perto: escolas, comércio, equipamentos desportivos. Havia muito espaço público e muitas crianças. Hoje, temos duas vezes menos crianças e quatro a cinco vezes mais carros», compara. Conclusão? «Temos um modelo de cidade que se tornou hostil» para as práticas de proximidade, mobilidade activa e desincentivo ao transporte individual. É esta a tendência a reverter por três motivos: «Perdemos muito tempo, há um custo ambiental e penaliza as nossas relações sociais».
Norton de Matos e Portela são «alvos prioritários»
As ruas deixaram de ser espaços privilegiados de socialização para servirem, em primeiro lugar, como vias de trânsito. «As pessoas querem ir do ponto A ao ponto B o mais rapidamente possível. Não há uma ligação, um apego. Não há sequer conhecimento da forma como ali se vive», observa Tiago Cardoso, à frente da Divisão de Mobilidade Urbana da CMC.
«Estamos a viver um momento muito crítico e muito quente em Coimbra. Qualquer alteração, por mais benéfica que seja, está condicionada por esta aura negativa»
Tiago Cardoso, Divisão de Mobilidade Urbana CMC
As consequências deste modelo de cidade vão além do stress, quebra das redes sociais e aumento da poluição — mede-se também pelo número de acidentes e vítimas mortais. A redução das velocidades praticadas na estrada, através de um novo desenho do espaço público, faz parte das boas práticas e está na agenda da Câmara, com a definição de zonas de 30Km/h e zonas de coexistência.
Os «alvos prioritários», sinaliza Tiago Cardoso, são «os bairros residenciais de Santa Apolónia, Pedrulha, Quinta da Portela e Norton de Matos, que têm um tráfego parasita [veículos que circulam para estacionar] absurdo». Sem detalhar o plano de trabalhos, o engenheiro destaca que o objectivo é «conseguir de forma harmoniosa convencer o carro a não circular e devolver o espaço às pessoas».

No bairro Norton de Matos, a rua Pedro Alvares Cabral, de sentido único, é já uma zona 30 e «há projectos» a «curto prazo» para Rua de Angola e Rua de Moçambique. Na Quinta da Portela, são os moradores a pedir à CMC que corte ruas ao fim-de-semana, uma proposta que Tiago Cardoso admite pôr em prática no próximo Verão. «Estamos a avaliar em que sítios e de que forma podemos testar soluções para depois replicar noutros pontos da cidade», adianta, insistindo que a mudança se faz «aos poucos», por causa «das mentalidades».
Metrobus é «oportunidade para mudar»
O grande desafio à transição para uma mobilidade suave é o tempo que perdemos nas deslocações diárias, com o carro a marcar pontos quando há rotinas enraizadas e uma rede de transportes públicos pouco eficaz. Coimbra está a mexer nestas variáveis: a dois anos do arranque do Sistema de Mobilidade do Mondego e com as obras do projecto a revirar trajectos habituais, o poder público, defende o urbanista Carlos Pinheiro, ganha condições para ser «mais impositivo».
«O metrobus vai ser uma oportunidade única para mudarmos alguma coisa. Precisamos mesmo que funcione. E só vai funcionar se a Câmara disser: “A partir de agora, aqui não se estaciona; aqui não anda o carro; aqui o estacionamento é pago”», diz. Medidas que, em Coimbra, dificilmente serão a curto prazo — para Carlos Pinheiro por «falta de coragem política»; para Ana Bastos, vereadora com o pelouro da mobilidade e dos transportes, por «respeito pela opinião da maioria da população». «Estamos a viver um momento muito crítico e muito quente em Coimbra. Qualquer alteração, por mais benéfica que seja, está condicionada por esta aura negativa», reforça Tiago Cardoso.

O planeamento participado é uma forma de criar consenso social, mas tem pouco alcance. Para a Câmara, falta envolvimento dos cidadãos: «Quando existe consulta pública as pessoas devem participar. Estamos de um lado da barrica e precisamos do olhar de quem está do outro lado», incentiva Pedro Costa, chefe da Divisão de Gestão Urbanística. «O que está a falhar é o método, a forma como os cidadãos são convocados», contrapõe José Carlos Pinheiro. A desempatar os dois lados, Joana Sobral, arquitecta paisagista, técnica da câmara, utilizadora de bicicleta e moradora no bairro Norton de Matos: «Não perguntaram a nenhum residente [sobre as Zonas 30 e de Coexistência]. Podemos responder para o nosso umbigo, mas tem de se explicar o que se pretende e ouvir todos os implicados na solução».
Falta de planeamento e burocracia são entraves
O «contacto com as pessoas», continua Pedro Costa, é o primeiro passo para desenhar uma cidade mais humana, mas, sem planos de urbanização, o modelo urbano anda a reboque do valor económico. «Deixamos ao promotor, que quer tirar rentabilidade, a iniciativa de projectar. Queremos que as pessoas vivam nos locais e não façam deles dormitórios. Mas a Câmara não tem essas ferramentas. Quem investe é quem decide se avança ou não», sublinha.

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«Coimbra não planeia e o grande erro tem sido este: o loteamento tem génese num promotor e a prioridade da Câmara é cumprir a regulamentação», concorda Miguel Pinheiro, arquitecto paisagista e vereador na Câmara Municipal de Arganil. À falta de planeamento junta-se uma «cascata burocrática», o «conservadorismo dos agentes decisores» e a «pouca flexibilidade da máquina administrativa». Pedro Costa conhece os resultados: «Somos obrigados a aprovar uma má solução, mas que cumpre tudo, quando uma boa solução pode passar ao lado por não estar a respeitar um determinado regulamento».
Com o Plano Director Municipal suspenso e sem planos de pormenor, nas novas zonas urbanas, situa Tiago Cardoso, a CMC esta «a ir à fonte» e a fazer com que os projectos sigam as orientações dos manuais de coexistência, «com a adopção de mobiliário urbano e hierarquização de vias» para «mudar a forma como pensamos o espaço público» e a «maneira como as pessoas se movimentam».
«Somos todos peões»
A resposta ao actual desenho de cidade tem sido mais carros em circulação, apesar dos estudos, debates, acções cívicas e investimento para promover alternativas mais sustentáveis. «Temos de ganhar consciência que estamos a fazer mal feito», observa José Carlos Mota, ao dar como exemplo a Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa Ciclável. A meta é chegar a 2030 com 7,5% das deslocações diárias feitas em bicicleta. Temos muito que pedalar para ser cumprida: «Tínhamos 0,5%; passámos a 0,6% [em dez anos]. Isto significa que são precisos mais de mil anos para podermos algum dia almejar este patamar», alerta.
Nas cidades mais favoráveis ao uso da bicicleta, houve perda de utilizadores e acentuada: mais um terço. «As pessoas só vão aderir aos transportes públicos, à bicicleta e ao andar a pé quando for mais cómodo do que ir de automóvel”, insiste Carlos Pinheiro.

«Coimbra não planeia e o grande erro tem sido este: o loteamento tem génese num promotor e a prioridade da Câmara é cumprir a regulamentação»
Ainda em Julho, Portugal divulgou também a Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa Pedonal, que, em sete anos, propõe aumentar a quota de deslocações a pé para 35% e aumentar em 50% o espaço pedonal acessível a todas as pessoas. «A qualidade de vida das pessoas e das cidades vai passar por assumirmos que somos todos peões», sublinha Miguel Pinheiro. Neste modelo, remata, “ter passeios com largura suficiente e percursos a pé acessíveis a toda a gente é mais fundamental do que ter ciclovias”.