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Alexandre Mendes: «O Paredes gostava muito de metal»

Sem pêlo facial parece que tenho 18 anos. Mas Alexandre Mendes tem 30 e várias camadas. É luz e é treva, é dia e é noite, madeira e metal. Nasceu em Coimbra às 2h55 da manhã — informação privilegiada, porque geralmente gosta de reservar a privacidade astrológica. A mãe é angolana e o pai da […]

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Sem pêlo facial parece que tenho 18 anos. Mas Alexandre Mendes tem 30 e várias camadas. É luz e é treva, é dia e é noite, madeira e metal. Nasceu em Coimbra às 2h55 da manhã — informação privilegiada, porque geralmente gosta de reservar a privacidade astrológica. A mãe é angolana e o pai da África do Sul, por isso sempre se ouviram línguas diferentes lá por casa, com especial queda para o inglês e o alemão.

A primeira palavra que disse na vida foi luz. Tinha 9 meses e apontei para o candeeiro e disse: Uz, uz! Ninguém diria, tal é o fascínio que tem pelo que está relacionado com o inverso, e tudo por causa de uma banda. Estava numa aula, no Colégio de São Teotónio — onde os recreios eram intensos, um bocado como o South Park —, e de uma pesquisa sobre mitologia foi parar ao escritor Howard Phillips Lovecraft, depois à personagem do escritor norte-americano Cthulhu e depois ao tema Cthulhu Dawn, da banda britânica de black metal Cradle of Filth. Ouvi aquilo e foi mesmo como no South Park: What the fuck man! This is very fucked up! Chamou o melhor amigo Bruno, sacaram o disco da Internet e não descansou enquanto não criou a própria banda, com Diogo Ferraz e João Dourado.

No início, os pais ficaram preocupados. Nos anos 2000 o black metal era visto como uma coisa esquisito, ainda havia muito o estigma do Tó-Jó e de uma coisa de pessoas inadaptadas e violentas. Mas Alexandre tinha um truque. Não bebia, não fumava, não fazia asneiras. Não queria coisas que me mexessem com a cabeça e o organismo em geral. Preferia pensar que tinha caído no caldeirão, como o Obélix, e isso bastou para pensar nos temas originais dos Antichthon, que se estrearam ao vivo em 2008, num concurso de bandas na Praça da República, em Coimbra.

Alexandre tinha 17 anos. Cabelo claro e liso até às ancas. Naqueles tempos, Coimbra já ouvia os Tales For The Unspoken e a jovem banda ensaiava o seu black metal sinfónico na cave lá de casa, todos os fins de semana. No primeiro disco, Through the Rupture of Dimensions, Alexandre conta uma história inspirada na Odisseia, com heróis do submundo, em que cada tema é um capítulo. Normalmente as letras de metal são uma seca, não passam de exclamações agressivas e usam muito a primeira pessoa na voz activa, a proclamarem-se coisas incríveis como: “Eu sou o destruidor!”. Não és destruidor coisa nenhuma meu, trabalhas num café.

Apesar do sucesso no Myspace, em 2011 a universidade fez dispersar a banda. Ó filho, pelo menos o curso, para ter aquela segurança. Alexandre, que (claramente) gosta de saber as regras do jogo, seguiu (a) Direito, com paragens na Alemanha, para Erasmus, e Estados Unidos, para o mestrado. No Texas fez mesmo parte de uma fraternity, como nos filmes, mas de resto tinha sempre a sensação de estar preso no Disney Channel. É uma vida muito plástica, não se via cultura nas ruas como em Coimbra, espaços verdes e transportes públicos, quais hunos que viviam nos cavalos, ali faziam tudo dentro do carro. Mas nem tudo foi mau, o sítio mais bonito que viu foi Wyoming, com as suas reservas naturais e vistas desafogadas, a fazer lembrar a Mongólia, terra de nómadas e throat singing, que um dia quer conhecer in loco

O ambiente influencia a música que é criada. Ai sim? E Coimbra? Coimbra é uma cidade de rock. E que gosto de esfregar na cara dos meus amigos estrangeiros, desde a minha faculdade à Sé Velha e às coisas dos mouros e dos godos. Não gosta de fado nem se envolveu na tradição académica. Mas gosto muito de Carlos Paredes, e o Paredes gostava muito de metal. Oi? Ok, é um bocado um rumor, mas dizem que ele já mais velho ouviu guitarristas de metal a tocarem coisas complexas e achou espectacular. E eu percebo porquê, porque a forma como ele tocava na verdade é muito parecida com o shredding do metal. Alexandre conta que, em Coimbra, a cena metal orbita o estúdio que entretanto o amigo João Dourado montou. É lá que marinam os discos que tem para lançar, de metal e de madeira, como ele diz, porque também se aventura na guitarra acústica e gosta de ouvir jazz, fusion e bossa nova.

Spell Sword e Existence:Void são os nomes dos projectos, a solo e acompanhado, hoje em dia já com o cabelo curto, óculos e o resto do tempo ocupado a ser outra persona, aos dias da semana: a de advogado estagiário na António Arnaut e Associados — Sociedade de Advogados. Sobre o aspecto, dispara: Por que é que as pessoas têm de olhar para mim na rua e saber exactamente as bandas que eu ouço na t-shirt que eu levo?

Enquanto outros sonhos não acontecem, como conhecer Hasjarl dos Deathspell Omega, vai enriquecendo o mundo interior efervescente, inspirado também pelos filmes de terror, como os da produtora A24. Menos do que o “darkside“, eu gosto da coisa cinematográfica e o meu projecto a solo vai muito por aí, uma espécie de ópera de metal que se passa na Alemanha medieval, parecida com as dos cavaleiros do Santo Graal, que eu gostava que fosse adaptada para teatro, para um videojogo ou mesmo para um filme. Uma temporada no Japão também está na calha do praticante de artes marciais. E concertos? Não são uma prioridade e é difícil conciliar agendas, mas notam-se as saudades que já tinha das noites nas discotecas States e Via Latina. Já dos festivais e Queima das Fitas nem por isso, pela falta de qualidade do som, além da mistura. E eu não gosto de música barulhenta. 

© Coimbra Out Loud
Fotografia: João Azevedo
Texto: Filipa Queiroz

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