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Vânia Couto: «Coimbra tem esta coisa bonita de gostarmos de tocar as músicas uns dos outros.»

Começou logo à nascença. A minha mãe estava prestes a ter-me e o meu pai chegou atrasado. Foi atrás da ambulância e ficou sem carta. O desastre já era uma coisa a acontecer na minha vida. Camaleoa sorridente, Vânia Couto tem as raízes no Norte mas o coração no Centro. Uma família biológica e uma […]

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Começou logo à nascença. A minha mãe estava prestes a ter-me e o meu pai chegou atrasado. Foi atrás da ambulância e ficou sem carta. O desastre já era uma coisa a acontecer na minha vida. Camaleoa sorridente, Vânia Couto tem as raízes no Norte mas o coração no Centro. Uma família biológica e uma família adoptiva. Um lado tranquilo e outro em permanente revolução. 

Nasceu em Espinho, where the streets have no name. Na rua 15 com a 23, a vizinha tornou-se segunda mãe porque a família vivia com muitas dificuldades. Por isso falo de desastre, é o estar sempre a deixar cair coisas, o clown. A música, existe desde que se sente gente. Se bem que, tanto de um lado como do outro, não há ninguém na família que tenha qualquer relação com cultura. Mas quando tinha uns 5 anos, surpresa, a madrinha foi à feira e voltou com uma guitarra azul de plástico na mão. Nunca mais a larguei. Conta-se que ia para a sala de estar, quando ninguém lá estava, punha uns óculos de ski e começava a cantar em frente ao armário espelhado.

Lembro-me de um dia chegar a casa e a guitarra azul estar partida, foi um dos maiores desgostos da minha vida. Às vezes ainda vai às feiras e procura uma, mas só porque nada tem a magia de uma guitarra de plástico azul. De resto, aos 16 anos, a madrinha entrou de novo em acção e deixou-lhe um novo presente no ninho. Cheguei a casa e tinha uma guitarra a sério, foi um momento muito especial. Os olhos brilham agora e as lágrimas têm vontade de sair, porque Vânia já não vai poder dar um abraço este Natal a essa mãe maravilhosa, que a envaidece e enche a memória de ternura.

Adolescência no quarto a ouvir música. Quem nunca? Como não tinha discos, era rádio mesmo. I’m outta love set me free and let me out this misery. Anastacia, Shania Twain, Mariah Carey, No Doubt. Eu ouvia tudo, gravava e depois imitava. Não tinha noção nenhuma de que aquilo era ensaiar, mas passei grande parte da minha adolescência a cantar. Até o pormenor curioso de ir para os cantinhos do quarto cantar virada para a parede, para perceber melhor a própria voz. Quando começo a cantar, vou para outro sítio e isso dá-me um prazer imenso. Era para mim, não era para um público, e acho que foi isso que me fascinou na música.

Depois de um ano a trabalhar numa padaria, Vânia juntou dinheiro e, em 2004, entrou em Psicologia, na Universidade de Coimbra. Sabia que queria ajudar a servir os outros, não sabia como e decidi que podia ser um caminho. Não foi só um, foram vários, porque à medida que ia aprendendo sobre a mente, também ia descobrindo o lado mais artístico da cidade, do teatro amador ao GEFAC – Grugo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra, passando pelo Diligência. Nunca tinha ouvido falar de Fausto, de Zeca Afonso, de música tradicional portuguesa. Achava que isso era parolo. O GEFAC foi a minha escola, o meu curso de música. Estar com as pessoas foi a maior aprendizagem. Lembro-me conhecer Luís Pedro Madeira e ficar fascinada. Lá sabia eu quem ele era ou os Belle Chase Hotel, eu vinha de um mundo completamente à parte. 

A pessoa tímida e fechada, desabrochou. Aos poucos, Coimbra tornou-se casa e Vânia Couto um camaleão, a trepar sedenta os seus ramos de diferentes cores e texturas. Já tentei ir embora, mas não consigo. Cantora, compositora, professora e autora de projectos dedicados à infância como o Catrapum Catrapeia, interessa-lhe a pedagogia moderna e voltou recentemente à Psicologia, com um estágio profissional numa clínica, onde trabalha com crianças e jovens com transtornos do espectro do autismo. As crianças são adultos sem palas, seres pensadores sem filtros, adoro estar com elas. E defende com unhas e dentes a pedagogia moderna e o facto de antes de aprenderem matemática, geografia e ciências ser preciso que os pequenos aprendam a ser Pessoas. Já diz José Mário Branco: Consolida filho, consolida. Ainda hoje ouve o Ser Solidário do início ao fim e fica estarrecida.

Branta foi acontecendo sem querer. Quando Vânia se senta sozinha, com a guitarra na mão, sai Nina Simone, Chavela Vargas, Violeta Parra, Mercedes Souza. Depois há os Pensão Flor, os Macadame e os outros ramos, as outras cores. Até um Festival Género ao Centro. Tenho pensado em fazer um disco a solo com músicas originais, mas não propriamente como Vânia Couto, isso faz-me muita confusão. Eu vejo a música como uma coisa colectiva e, no caso da Branta, é ir buscar as minhas duas grandes paixões: a música tradicional portuguesa e a música de intervenção. 

Vânia diz que se tem sorte na vida é nas pessoas que encontra. Maria Villanueva é uma delas – apesar de a lembrar do curso que quase fez no Hot Clube de Portugal. Fizeram um disco sobre as canções tradicionais de mulheres galegas e portuguesas e foi bem especial. Sou mulher, sou artista e faço parte da comunidade LGBTQIA+, para além de ser canhota. As minorias dizem-me muito ou, como dizia a Simone Beauvoir, o outro. É uma luta mas é uma luta de que me orgulho muito. E põe o coração em tudo. Até nesta conversa, ainda em tempos de pandemia. A cultura é muito importante e a cantiga é de facto uma arma; o que eu tenho sentido durante a pandemia é um profundo respeito pela cultura, apesar de tudo, no sentido em que é uma coisa de que as pessoas precisam, mas quem faz precisa de comer.

Coimbra tem um ecossistema especial. Sinto que há vários nichos que não se misturam, que as pessoas que vão a determinado sítio e não a outro, podiam cruzar-se mais. Quando sabe que há gente nova a chegar, quer que tenham oportunidades como as que lhe deram. Os artistas aqui gostam de passar conhecimento, de dar espaço. Estão sempre de braços abertos. Coimbra tem esta coisa bonita de gostarmos de tocar as músicas uns dos outros. O trinta e um às vezes, é o palco. Detesta vestidos, detesta sapatos. Quando tem concerto com os Pensão Flor, já sabe que precisa de 1 hora para se preparar. Não gosto, mas cria a tal personagem para o contexto onde estou. No fim são capazes de falar primeiro do que eu tinha vestido mas agora há muito mais diversidade, apesar de continuarem a ser mais homens.

Prefere cantar em português. Porque eu quero que daqui a uns bons anos, digam: Olha, a minha avó cantava aqui umas cantigas. E por falar em futuro, há planos? Não faço a mínima ideia. Agora é neste sentido, da intervenção, da música e da escolha que quero. Ser solidário assim, para além da vida / Por dentro da distância percorrida / Fazer de cada perda uma raiz / E improvavelmente ser feliz. 

© Coimbra Out Loud
Fotografia: João Azevedo
Texto: Filipa Queiroz

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