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Sugiram-nos convidados

Pessoas de fora em Coimbra

O Mundo em Coimbra | Brasil

Três anos se passaram. Para ser precisa, hoje: três anos, dois meses e catorze dias do dia em que cheguei a Coimbra com minha família. Nas malas trouxe, além das roupas, a escolha. Sim, ao se mudar de país, o que mais pesa e ocupa espaço na bagagem é a escolha.

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Fotografia: Mário Canelas

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Pessoas de fora em Coimbra

O exercício de estimar que objetos reunirão mais condições de aplacar saudades e gerar sensação próxima ao chão firme de casa. Estimei cada um dos que acomodei na mala e sempre que olho a forma de bolo e a peneira antigas, penduradas na cozinha, é a minha avó que vejo. A estante de livros me diz dos autores que não quis deixar para trás e as gavetas estão cheias dos caderninhos escritos por um eu antes da travessia do oceano. Escolhi vir com tudo o que podia — dentro das viabilidades alfandegárias e financeiras, bem entendido —, porque penso que a forma de estar em um lugar, de ocupar uma nova casa, determina também a forma como este espaço nos acolhe. Quadros e fotos na parede me lembram todos os dias que escolhi estar de forma inteira aqui e não em estado de suspensão.

Não digo com isso que abandonei o Brasil para nunca mais voltar, porque não é verdade, apenas que vim para Portugal em voto de entrega. É claro que me doem as saudades da família, dos amigos, dos cheiros, das maneiras de falar, das comidas, das festas…, mas o golpe da dor atinge um corpo consciente de sua escolha e, portanto, forjado também para sentir plenamente a alegria da aventura, da experiência. Eu me entreguei a isso, ao atravessar e, por muitas vias, de diferentes formas, sinto Portugal se dando também a mim — e isso é de tal maneira forte que só de escrever isso sinto o corpo se aquecer por dentro e me vem à mente um punhado de pessoas e sorrisos.

Coimbra foi um caso de amor conquistado, «amor cortês», destes que vêm de mansinho, sem alardes. Começo do primeiro fio: em uma viagem de férias da família, em Fevereiro de 2018, visitamos a cidade e minha filha mais velha, Helena, em vias de escolher uma faculdade para a graduação por ela pretendida, sentiu vontade de entrar no edifício da Física, da UC, para conhecer. A ideia era só pegar algumas informações na secretaria, mas a senhora que lá estava, muito gentil, além de esclarecer o que podia, perguntou se não gostaríamos de conversar com o coordenador João Gil. Dissemos que sim, claro. E então vimos um homem fascinado pelo o que fazia. O gosto dele em falar sobre o que sabia — em Física — só era suplantado (a olhos vistos: por uma diferença nos trejeitos e na intensidade da faísca no olhar) pelo gosto em falar sobre o que não sabia e que, portanto, convocava-lhe a busca: «Gostava de ser eu a descobrir isso!». A frase, em casa, virou bordão afetivo até hoje repetido sempre que alguma curiosidade impera.

Um tempo depois deste dia, Helena se viu aprovada para todas as universidades que almejava no Brasil e decidiu optar por Coimbra. (Não sei se o professor João Gil sabe o quanto pesou sua acolhida — quase metafísica, com o perdão do gracejo —, nesta decisão, mas é bom que saiba. E é bom também que nosso agradecimento seja público e notório.) A ideia era que Helena viria fazer a graduação sozinha, no entanto, se alguém disser que eu não tive maturidade para ter um oceano entre nós, não irei desmentir. Mas não foi só isso. Atraia-me também a chance de oferecer aos meus olhos outras paisagens. Penso que ver um lugar pela primeira vez, em presença, é exercício fundamental de escape de nossa redoma egocêntrica — esta que é constantemente reconstruída, mal se parte.

Então, tendo toda a família aceite o desafio, chegamos a Coimbra no dia 25 de outubro de 2018 com o fito de passarmos alguns meses na cidade antes de nos decidirmos entre morar no Porto ou em Lisboa. Durante os primeiros meses essas duas cidades foram alvo de muitas agradáveis viagens — ao Porto, semanalmente, para minhas aulas do mestrado e a Lisboa frequentemente para encontrar amigos. E fui percebendo aos poucos que, quando chegava de volta a Coimbra, uma sensação alegre e tranquila tomava-me. Um dos meus deleites favoritos: quando se sai à rua é quase uma constante cruzar ao acaso com alguém conhecido e, se o tempo permite aos dois, trocar «meio dedo de prosa», como se diz no Brasil. O resultado é que, por força deste hábito, muitas amizades inusitadas, impensadas, não planejadas ou buscadas vão se construindo — e isto é absolutamente maravilhoso (!) porque nos colore internamente com tintas diversas. E é deste alimento que a tolerância precisa, não? É claro que em uma cidade maior podemos nos ver surpreendidos neste jogo armado pela senhora Fortuna, mas é mais difícil nos deixarmos enredar… Primeiro porque, em geral, o tempo de «prosa solta» é reivindicado pelo tempo gasto no trânsito, nos deslocamentos entre lugares, e, segundo, porque acabamos circunscritos em nossos pequenos círculos bairristas — assim, encontram-se as pessoas que estudam juntas; que trabalham juntas; que têm filhos na mesma escola; que dividem a mesma vizinhança… Em Coimbra o caldo é maior e, neste caldo, posso dizer sem me afogar, fiz grandes amigos. Meu coração foi fisgado em seu centro pelo centro de Portugal — não faz todo o sentido?

Por quais anzóis? Seria bastante injusto da minha parte não nomear os principais: foi no Seminário Maior de Coimbra que senti o calor de pertencer a uma comunidade e é lá que renovo meu ânimo todas as semanas. Por quê? Porque lá vejo o desejo de fazer deste mundo um lugar melhor sem o medo de colocar esta intenção confrontada com as dificuldades e alegrias da vida diária e suas armadilhas. Foi o Pe Nuno Santos, reitor do Seminário e tornado amigo querido, quem primeiro revelou um grande segredo — que como todo bom mistério está às claras para quem quiser ver: a «pequena» cidade de Coimbra esconde tantas, mais tantas (!), atrações singulares — seja nos becos da Baixa (já foi ao Diligência?), nos arredores, nas exposições do CAPC e do Colégio das Artes, nos espetáculos trazidos, nas sessões de cinema do TAGV — que até hoje não pude conhecer tudo e é comum também que não consiga estar presente em muitos eventos que a vida cultural oferece.

Outro anzol: foi na SESLA – a Secção de Escrita e Leitura da Universidade de Coimbra, que encontrei um lugar onde a poesia experimenta a si mesma simplesmente pelo gosto de ser poesia. Para além disso: em toda a cidade há uma espécie de camaradagem poética — onde ouvir o outro dizer um poema expande as fronteiras da autoria e o enlevo da criação veste a todos. E, por fim, foi no coletivo Vozes de Coimbra, que encontrei lugar para, mesmo com a distância de um oceano, continuar lutando pelo retorno político do Brasil à razão. E a razão está em se trabalhar incansavelmente para que todos, brasileiros ou não, possam ser casa da dignidade: comida na mesa, teto protegido, educação que promova condição interna de reflexão e pensamento, segurança de um sistema de saúde que acolha os momentos mais frágeis do ser humano e a satisfação de se ver como parte útil à engrenagem do mundo pela possibilidade do trabalho e do emprego.

Tenho consciência que foi o acesso a estas facetas concretas da dignidade que me possibilitou escolher esta aventura de morar em outro país. Há uma imensa maioria no mundo que não pode fazer isso – é expulsa de sua própria terra pela guerra, pela fome, pela intolerância, pela falta de oportunidade e, por isso, chega ao outro lugar com pedaços de si a faltar. Quero poder ajudar a essas pessoas a resgatarem de volta os pedaços que ficaram pelo caminho. Que possam se sentir repletas de si mesmas em qualquer lugar que estejam.

O mundo é aqui. A hora é agora. Trouxe tudo o que preciso comigo — o berço das coisas: a vontade. Que eu não a deixe neblinar.

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