Quando pedimos que sugerisse o local de encontro para a nossa conversa, Massouda Hedayat escolheu o Departamento de Engenharia Informática da Universidade de Coimbra (DEI). O DEI simboliza a reconstrução do futuro desta jovem afegã, com vista para um horizonte longe da guerra e do medo que deixou para trás.
Apesar do relato brutal da sua vida desde que os Taliban ceifaram vidas e sonhos, Massouda guardou da sua infância o sorriso destemido que nos foi oferecendo ao longo da tarde, enquanto nos relatou as tentativas fracassadas de saída do Afeganistão, a fuga bem sucedida para Portugal e a sua vida actual, em Coimbra.

Massouda é natural de Cabul, no Afeganistão, tem 21 anos e é a mais nova de sete irmãos. É uma jovem estudante de informática que cresceu feliz na sua casa e a brincar na rua. Teve uma infância plena de viagens a outras províncias do país, onde fazia piqueniques com a família e amigos, educada a pensar que podia fazer tudo o que qualquer outra pessoa faz, seja rapaz ou rapariga.
Esta não foi a realidade de todas as mulheres afegãs. O regime taliban vigorou entre 1996 e 2001, até ser derrubado com a invasão dos Estados Unidos da América (EUA), em 2001. Nesse período de tempo, a mãe ou as irmãs de Massouda souberam o que significa não poder estudar nem poder caminhar na rua sem a companhia de um homem, e conheceram histórias de casamentos forçados.
Nas décadas seguintes, entre 2001 e 2021, o Afeganistão foi palco de um permanente conflito armado entre as forças militares, apoiadas pelos aliados ocidentais, e as forças taliban, que mantiveram o controlo de uma parte do país, especialmente nas zonas rurais e montanhosas. Também foi nestes 20 anos que o país registou uma importante evolução na escolaridade, nas oportunidades para mulheres, na literacia jovem, na diminuição da mortalidade infantil, na esperança média de vida, no aumento do PIB e na diminuição da pobreza.

Massouda nasceu em 2001, ano em que, nas suas palavras, «tudo se tornou melhor do que antes». E reforça: «a comunidade internacional ajudou-nos de muitas formas. Isto não é a minha ideia pessoal, é a convicção generalizada de que, depois dos Taliban serem afastados, houve desenvolvimento de negócios, educação para todos, as mulheres tiveram maior liberdade. Quando a comunidade internacional veio, aconteceram muitas coisas positivas.»
Ouvimos Massouda falar sobre os seus dias de jovem adulta, passados ao ritmo de conversas em que podia falar de tudo, sempre focada no seu curso de engenharia informática na Universidade de Cabul. «Eu tinha uma vida livre. Eu e os meus amigos íamos juntos para a universidade, em turmas mistas. Costumávamos sair juntos, íamos a restaurantes, tínhamos projectos com outras raparigas e rapazes.»
A partir de 2020, com a retirada progressiva dos Estados Unidos do Afeganistão, os Taliban iniciaram uma forte ofensiva armada contra o Governo de Cabul, que culminou com a tomada à força da capital afegã, em Agosto de 2021.«A minha vida mudou numa noite, numa única noite. Sabíamos que os Taliban eram poderosos, mas ninguém, ninguém, esperava que eles viessem para Cabul e tomassem conta do país desta forma, tão fácil.»
A minha vida mudou numa noite, numa única noite. Sabíamos que os Taliban eram poderosos, mas ninguém, ninguém, esperava que eles viessem para Cabul e tomassem conta do país desta forma, tão fácil.
As tentativas de fuga do Afeganistão
No dia 15 de agosto de 2021, um dos amigos de Massouda ligou-lhe a dizer que devia ir para o aeroporto, que havia um avião militar que ia tirar pessoas do Afeganistão, sem necessidade de visto. No início, não acreditou que fosse possível chegar lá e simplesmente fugir, mas decidiu ir com os pais ver o que se passava.
«Quando lá chegámos, fiquei chocada. Vi milhares de pessoas, uma multidão enorme, os terminais e portões estavam partidos, não havia postos de controlo. Eu não conseguia respirar, vi crianças no chão que ninguém conseguiu sequer apanhar, dezenas de pessoas morreram esmagadas naquelas condições. Os militares empurravam as pessoas para se irem embora. Senti que era o fim do mundo, não conseguia acreditar no que estávamos a passar. A minha mãe tem 63 anos e o meu pai tem 59, foi muito difícil para eles. Sofri muito. Foi muito, muito difícil, acho que ninguém consegue imaginar o que foi estar naquela situação.»
Massouda e os pais não conseguiram sequer chegar à porta do aeroporto, estiveram apenas do lado de fora e decidiram ir embora. Ficaram feridos ao tentar furar a multidão no regresso a casa, mas a maior dor de Massouda foi perceber que, a partir daquele dia, precisava de ficar escondida em casa. «Viemos para casa e eu pensei que nunca ia ser capaz de estudar. A primeira coisa que me veio à cabeça foi a minha educação: será que vou conseguir terminar o meu curso na universidade? Naquele momento senti tanta pena de mim própria. Empenhei-me tanto, sacrifiquei tanto para ter um futuro melhor, para servir o meu povo, para ser uma pessoa boa para ajudar as pessoas, sobretudo as mulheres.»

Sentir que não tinha nada a perder foi o que lhe deu força para decidir fugir do Afeganistão. Nas semanas que se seguiram, Massouda falou com jornalistas e outras pessoas sobre formas de fugir. O balão de oxigénio para uma vida que se reduzia às paredes de casa foi a janela das redes sociais, sobretudo o WhatsApp e o Twitter, onde escreve sob o pseudónimo Aisha Ahmad.
Numa das tentativas de fuga, quase caiu na armadilha de um Taliban que se fez passar por militar. Este homem trocou mensagens com Massouda, indicou-lhe um local para supostamente a ajudar a sair do país mas, na noite combinada, a jovem afegã percebeu que se tratava de uma emboscada. «Fui com a minha família e, quando me aproximei, estavam lá imensos Taliban. Foi muito assustador, eu tremia por todo o lado, só queria agir normalmente para não dar nas vistas, e vim-me embora.» A partir deste momento, passou a mudar de casa frequentemente, a sua vida estava em perigo.
Cada campainha que ouvia deixava-me a tremer. “São eles, são eles”, sempre com medo que os Taliban nos encontrassem. Eles podiam fazer a leitura dos dados biométricos que já tinham acesso com o meu passaporte.
As movimentações na cidade eram difíceis e tinham de acontecer a meio da noite, de carro, com a sua família.«Cada campainha que ouvia deixava-me a tremer. “São eles, são eles”, sempre com medo que os Taliban nos encontrassem. Eles podiam fazer a leitura dos dados biométricos que já tinham acesso com o meu passaporte.»
A família de Massouda é da província de Paruan, perto de Panshir, no norte do Afeganistão, e decidiram seguir procurar refúgio nessa região. Apesar da fraca ligação à internet, Massouda começou a comunicar pelo Twitter com algumas pessoas que, a quilómetros de distância, na Europa, se disponibilizaram para a ajudar.

(Imagem publicada por Massouda Hedayat na sua conta no Twitter)
Noutra tentativa de fuga que fracassou, Massouda chegou a despedir-se dos pais para receber ajuda de uma organização que apoiava apenas jovens. Correu para o local indicado, mas recebeu um alerta de segurança de um militar francês sobre um ataque de bombista suicida nessa noite. Massouda ligou a amigos, a avisá-los do perigo iminente, mas alguns deles responderam que se poderiam tratar de notícias falsas.
«A explosão aconteceu mesmo. Vi pessoas espalhadas no chão, sangue por todo o lado, crianças, mulheres, tudo ensanguentado. Perdi uma pessoa amiga a quem avisei para sair de lá. Corri no meio da noite, eu, sozinha, mulher, cheia de medo de qualquer pessoa com quem me cruzasse na rua. Sem governo, qualquer pessoa pode fazer qualquer coisa.»
Ficamos uns minutos em silêncio até nos decidirmos levantar para seguirmos viagem para outro local preferido de Massouda, em Coimbra – o Parque Verde do Mondego. À saída do DEI, cruzámo-nos com uma pessoa que nos pede indicações. Foi Massouda que lhe respondeu. Já conhece os cantos a esta sua nova casa, em Coimbra, que lhe oferece futuro e liberdade pela mão da educação.
Sigam para o próximo capítulo da história de Massouda Hedayat, que conta os detalhes da sua fuga para Coimbra.
