O ponto de encontro foi na esplanada do café Rainha da Portela, ao cimo da rua Ruben A, no coração da urbanização da Portela. Sentámo-nos à conversa com António Mexia Santos, presidente do conselho de administração de um hotel em Coimbra, e Sofia Morais, gestora de produto numa empresa de desenvolvimento de software. O que nos trouxe a este encontro soalheiro não foram as suas profissões mas o facto de serem moradores deste bairro e organizadores de sessões voluntárias de recolha de lixo.
A ideia de apanhar lixo das ruas do bairro avançou em dois momentos no tempo. A primeira sessão aconteceu em 2020, já em pandemia, pela vontade de António e do amigo João Vítor Baltazar, que fizeram uma recolha de lixo e decidiram desafiar mais pessoas para uma segunda ronda. Em seguida, lançaram o apelo no grupo do Facebook da Quinta da Portela para que a vizinhança também se pudesse juntar. O resultado foi um projecto voluntário mais participado que, na altura, foi notícia na imprensa local, suscitou um entusiasmo adicional e maior participação na recolha seguinte.
Em 2021, sem ter conhecimento do espírito voluntarista que já animava o bairro, Sofia organizou outra recolha de lixo. «No final do Verão do ano passado, participaram umas 15 pessoas. Depois o António lançou a ideia de fazermos isto de forma regular, no primeiro domingo de cada mês. Costumam aparecer cinco a dez pessoas, quase sempre mulheres, entre os 30 e os 60 anos de idade.»
«A Sofia organizou outra recolha de lixo e é uma coisa engraçada é que os homens não aderem tanto e ainda não percebi a razão para isso acontecer.»
António Mexia Santos

A comunidade no facebook da Quinta da Portela, que conta com cerca de 2100 pessoas, é animada com diversas publicações diárias sobre assuntos relacionados com as preocupações da vizinhança. Para procurar espevitar a participação de outros moradores, António e Sofia partilham sempre um par de fotografias que ilustram a produtividade das sessões mensais que organizam, com os sacos de lixo bem recheados de tanta coisa que não devia estar nas ruas. Surgem sempre muitas reacções, vindas de quem agradece e bate palmas, mas também de quem procura justificar o lixo na rua: «se calhar a pessoa não viu» ou «se calhar deixou cair sem querer». A verdade é que a comunidade envolve-se na discussão sobre a razão de ser do lixo nas ruas e até se publicam fotografias que provocam discussões (mais ou menos acesas) sobre as peripécias do bairro.
«Uma vez puseram uma fotografia de um Ecoponto onde alguém despejou a casa inteira: livros antigos, documentos, etc. Toda esta papelada estava à volta do ecoponto, estava tudo identificado. Calcei as luvas, coloquei tudo no ecoponto e partilhei a fotografia no grupo para mostrar que o que fizeram não é correcto mas podemos fazer mais do que nos queixar.»
António Mexia Santos

António falou-nos da teoria das janelas partidas que nos diz que, se um sítio estiver maltratado, mais facilmente continua a ser maltratado, mais facilmente se deixa desarrumado. «Por oposição, se estiver tudo um brinco, até tens vergonha de conspurcar o sítio que está impecável. O que pretendemos com estas sessões de lixo é uma pequena acção no sentido de arranjar as janelas.»
O voluntarismo deste grupo de cidadãos contrasta com algumas opiniões que defendem que este trabalho deveria ser da responsabilidade do município de Coimbra. «Já ouvimos pessoas (que devem estar chateadas com a vida e conseguem achar um lado negativo no meio disto que fazemos) que nos disseram que isto é para os serviços da câmara, que não devíamos andar a promover estes momentos. Conseguem derrotar uma coisa que é 100% positiva.»
Perguntámos se deveriam ou não ser os serviços municipais a cuidar do espaço público e Sofia respondeu-nos num ápice: «Em primeiro lugar, devemos todos produzir menos lixo, depois devemos respeitar as normas da recolha do lixo e evitar pôr o lixo para o chão, como as beatas e as pastilhas que são coisas que as pessoas intencionalmente colocam no chão. Este trabalho é de todos. Os serviços municipais devem fazer a sua parte, mas também podemos fazer a nossa.»
«Há muita gente a agradecer e a bater palmas, o que não serve de muito porque depois as pessoas não aparecem.»
Sofia Morais

Sessões de recolha de lixo
O ponto de encontro é sempre às 10h do primeiro domingo de cada mês, no parque infantil da Quinta da Portela. O percurso de recolha não segue um circuito específico, a ideia é que o grupo ande sempre junto e vá alternando entre as diferentes ruas da urbanização.
Os voluntários devem equipar-se com o material básico como sacos de lixo e luvas. Os apanhadores de lixo (ou pinças de jardim) também são muito úteis porque ajudam na celeridade da recolha.
Desenganem-se se acham que só se encontram beatas de cigarros e máscaras cirúrgicas descartáveis. «Há muito lixo das construções, guardanapos, escovas de dentes, frascos de desodorizante, maços de tabaco, raspadinhas, copos, brinquedos de crianças, etc. Dá a ideia que o lixo voa das varandas ou dos ecopontos.»
Cada sessão dura aproximadamente duas horas, até que o cansaço devolva este grupo de moradores às suas casas. No final, de regresso ao parque infantil, fotografam-se os sorrisos empenhados e os sacos de lixo recolhidos, registos do que se fez e que é partilhado com a vizinhança. E se o grupo vir que há caixas de cartão fora do ecoponto, dobram-nas e colocam-nas dentro do caixote adequado, para que não voem.
«Há uma senhora que apanha quase sempre dois sacos de lixo. Toda a gente enche pelo menos um ou dois sacos. Eu passo muito tempo de volta de beatas que não terminam. Os canteiros ao lado das árvores do estacionamento estão cheios de beatas. No final de cada recolha, fica-se com aquela sensação de quem já foi ao ginásio.»
Sofia Morais
Motivações
Para António, a principal motivação para investir o seu tempo a cuidar das ruas do lugar onde vive foi «olhar para o sítio onde vivo e achar que não está condigno. Quando vou apanhar lixo, sinto aquilo que sempre pensei que ia sentir, um bem estar enorme.»
Já Sofia explicou que apanhar o lixo do seu bairro não é propriamente uma novidade. «Faço isto há muito tempo, sempre que vou à praia, é raro não vir de lá cheia de plásticos. Quando eu vim para cá morar no ano passado, já havia luz ao final do dia, e eu fazia sempre um passeio de uma hora ao final da tarde e irritava-me o lixo que via nos passeios. «Para mim, o desperdício e a sobreutilização dos recursos do planeta sempre foram uma preocupação desde que era criança. Curiosamente, tenho cada vez mais amigos que se preocupam com estes temas. Sinto que é um assunto cada vez mais presente, ao passo que antigamente eu falava nas coisas e as pessoas quase se riam de mim».
«O mindfulness está na moda e convido-te a vir apanhar lixo, é aquela medalhinha que colocas em ti próprio por saber que estás a fazer bem.»
António Mexia Santos
Sentido de comunidade
A urbanização Quinta da Portela, localizada em Coimbra, prolonga, no sentido Nascente, a malha urbana de quarteirões que estrutura o Pólo II da Universidade de Coimbra e foi pensada com o propósito de criar milhares de novos apartamentos. Nestes quarteirões de prédios com cerca de seis andares, podia perder-se o sentido de comunidade que nos habituámos a associar à vida nas aldeias, mas quando António vai passear a cadela, já se cruza com vizinhos com quem troca os bons dias e já o tratam pelo nome no café ou à porta da imobiliária. «Isso é que faz um bairro, para além de um somatório de casas. Não conhecia a Sofia e estamos aqui hoje, isto decorreu de uma acção tão simples como esta. O momento de recolha do lixo é uma coisa engraçada e, quando há esta coesão, todos mais facilmente se mobilizam para outras coisas.»
As rondas deste batalhão do lixo já originaram outras ideias criativas como a da moradora Cláudia que deixou em frente à agência imobiliária ERA um cinzeiro grande onde escreveu “cinzeiro comunitário” para que as beatas tivessem um destino diferente do chão. Esta mesma moradora Cláudia não só tem partilhado com Sofia o gosto por plantas como tem conversado com outra vizinha, Paula, sobre a ideia de criar uma venda de garagem e ainda um clube de partilha de livros.
«As pessoas que se juntaram quase todas elas já apanhavam lixo na rua individualmente a agora estamos juntos, reclamamos da vida todos juntos em vez de ser cada um para cada lado.» (risos)
Sofia Morais