Quem desce de Santo António dos Olivais para a Cruz de Celas vê, à direita, um pórtico castanho que não passa despercebido. Aquele pórtico marca a entrada do antigo Hospital Pediátrico de Coimbra, um espaço onde muitos actuais adultos foram tratados ao longo de 34 anos (1977-2011). Mas hoje, o que se encontra, é um local ao abandono e, apesar de já ter havido ideias, as entidades com quem falámos indicam não haver qualquer projecto para o local.

«Este exercício complexo em aprofundar os valores que se vislumbram só acontece consoante a atenção que o público, as autarquias, os políticos, os profissionais e as escolas de arquitectura compreendam e se preocupem com os valores do referido património»
Inês Massano, arquitecta
Em 2020, Inês Massano, então mestranda em Arquitectura na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, resolveu dedicar-se ao antigo Hospital Pediátrico na sua dissertação de Mestrado. Projectou para aquele local a deslocalização dos Serviços Administrativos e das Consultas Externas do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC).
«É um projecto que se adaptava bastante bem ao local e atenuava o estrangulamento do CHUC, que é um problema grave no funcionamento do Centro», conta-nos Inês Massano, hoje arquitecta no escritório Branco Del Rio, na Rua dos Combatentes. Interessada no património hospitalar da cidade, afirma ter escolhido o antigo Pediátrico pelo seu valor artístico e histórico. «Não se percebe que haja um edifício completamente degradado no centro de um pólo de saúde», critica.


A arquitecta fez várias visitas ao local durante a dissertação e conta o cenário que encontrou. «Há uma degradação muito grande, desde vidros partidos, humidades, mosaicos completamente deformados e desfigurados», descreve. Massano reuniu com o então presidente do Conselho de Administração do CHUC, Fernando Regateiro, que lhe confessou ser uma pena o espaço estar como está, mas reconhecendo que não cabe ao CHUC definir a utilização do local.
Remodelação mantendo a base
No projecto desenhado por Inês Massano é aproveitado muito do edifício, embora preveja a construção de um novo. «No meu projecto, seriam demolidos anexos e seria construído um novo edifício para as Consultas Externas, para além do já existente. Num 2º volume haveria uma ludoteca, uma cafetaria e um auditório. Teria ainda duas entradas: uma pela Avenida Bissaya Barreto e outra pela [Alameda] Armando Gonçalves», descreve.

Na dissertação, é justificada a opção pela deslocalização das Consultas Externas. «Representa uma das áreas de maior afluência do Hospital, aproximadamente cerca de 520 mil consultas por ano. Ao retirar o programa da ala norte do corpo principal do Bloco Central, ganha-se espaço para outras funções, actualmente acumuladas e, em simultâneo, melhorar-se a resposta em ambulatório na nova instalação.»
Em diálogo com os principais agentes de cooperação e autarcas de natureza institucional pública, percebemos que o programa que o projecto propõe, em termos de logística, é fácil de apoiar e tem a vantagem de reduzir os custos de manutenção, por agrupar todo o serviço de saúde que se restringe apenas ao funcionamento diurno. Além de que a distância entre as duas entradas respectivas dos equipamentos de saúde é reduzida, cerca de 450 metros. Isto significa que para percorrer o trajecto do CHUC até ao antigo Hospital Pediátrico demora-se 5 minutos a pé. O percurso de automóvel é mais longo, cerca de 1 quilómetro, demorando 3 minutos», descreve a então mestranda.

Em termos de estacionamento, o projecto prevê 184 lugares de estacionamento para os utilizadores (utentes, médicos, enfermeiros, assistentes operacionais e público em geral), 48 lugares no espaço exterior, 32 lugares no interior da plataforma de acesso da Avenida Bissaya Barreto e 104 lugares repartidos nos dois primeiros pisos da nova estrutura alongada. Haveria ainda lugares privados para veículos de transporte de pessoas (ambulâncias).
Na conclusão da dissertação, Inês Massano refere que «é desejável que a observação do património que se encontra degradado estimule para a preservação do mesmo, nomeadamente, o património hospitalar. Este exercício complexo em aprofundar os valores que se vislumbram só acontece consoante a atenção que o público, as autarquias, os políticos, os profissionais e as escolas de arquitectura compreendam e se preocupem com os valores do referido património».
Estado de degradação
O espaço está sem actividade desde 2011, tendo atingido um estado de degradação. Nas visitas que fez, Inês Massano admite ter ficado impressionada com o estado das instalações. A mesma impressão foi-nos partilhada pelo fotógrafo André Ramalho, que fotografou o local em 2017 para o seu portal Abandonados.pt. «Encontrei um edifício enorme completamente vazio e desaproveitado. Nota-se que já foi frequentado por algumas pessoas depois do abandono, provavelmente miúdos que procuram um pouco de aventura, mas felizmente não é um edifício muito vandalizado porque tem segurança à entrada», aponta. Um ano depois da sessão fotográfica, voltou ao local com um amigo e lamenta tê-lo encontrado no mesmo estado. «Espero que seja aproveitado em breve», apela.

Por causa de edifícios como o antigo Hospital Pediátrico foi criada, em Junho de 2021, a plataforma «Vamos recuperar o património esquecido», que faz um levantamento de edifícios públicos que estão degradados ou ao abandono. No mapa constam 80 edifícios públicos devolutos e 18 que foram recuperados por outro uso, espalhados por todo o país. Falámos com a eurodeputada Maria Manuel Leitão Marques, impulsionadora do projecto, que nos contou da sua «indignação perante o abandono de património que podia ser utilizado, seja muito ou pouco valioso», levando a fazer este mapeamento. «O mapeamento não deveria ser feito por nós. Deveria ser a Administração Central, em colaboração com as autarquias, devendo a lista ser pública», defende a eurodeputada.

A plataforma está a desenvolver um documento para entregar ao Governo, no qual pedem a criação de uma entidade que assuma a responsabilidade pela gestão integrada de todo o património e a produção de um mapeamento do património público do Estado, disponível a todos através de uma plataforma digital. «Queremos ainda promover a discussão pública sobre o uso dos edifícios, e que a atribuição a terceiros seja baseada num processo concursal, com regras claras e indo ao encontro de uma estratégia de desenvolvimento local», completa Maria Manuel Leitão Marques.
A quem compete a remodelação?
Perante o estado de degradação do antigo Hospital Pediátrico, quisemos saber a quem pertence o espaço. Após falarmos com várias instituições, foi-nos explicado que o edifício está na posse da Direcção Geral do Tesouro e Finanças (DGTF), na dependência do Ministério das Finanças. No entanto, a segurança presente no local está a cargo do CHUC e a Câmara Municipal de Coimbra é detentora de um lote do terreno.

«Apenas o terreno onde se encontravam os pavilhões pré-fabricados das Consultas Externas pertence à Câmara Municipal de Coimbra», explicou-nos o Gabinete de Comunicação da autarquia. Da parte do Gabinete de Comunicação do CHUC disseram-nos que «os hospitais são entidades meramente afectatárias dos imóveis enquanto neles se mantiver a actividade de prestação de cuidados de saúde. Quando essa atividade cessa, os imóveis entram na titularidade do Ministério das Finanças através da DGTF». Completa ainda que «o CHUC tem o direito a uma percentagem do produto da venda ou de outra forma de alienação, quando e se tal alienação ocorrer. Não é o CHUC que tem competência para definir o destino dos imóveis».
Ideias não avançaram
Ao longo destes 11 anos de inactividade, foram lançadas várias ideias para o antigo Pediátrico. No entanto, nenhuma avançou. Em 2014, o então director da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, Joaquim Murta, disse que era o espaço ideal para acolher o Instituto Multidisciplinar do Envelhecimento. No entanto, em 2020, o Instituto foi anunciado num edifício de raiz a ser construído no Pólo III da Universidade.

No final de 2020, o Executivo Municipal liderado por Manuel Machado anunciou que, no lote pertencente à Câmara Municipal de Coimbra, e onde se situam os pré-fabricados das Consultas Externas, iria nascer o Arquivo Municipal, projecto que o actual Executivo já abandonou. «O Arquivo Municipal já não irá para esses velhos pavilhões», disse-nos o Gabinete de Comunicação da Câmara Municipal de Coimbra.
Maria Manuel Leitão Marques conta-nos que, em 2017, quando ainda integrava o Governo, propôs que aquele edifício se convertesse numa residência de estudantes. «Na altura, os CHUC não aceitaram a proposta, invocando que tinham planos para a sua utilização. Se fosse o caso, até poderia fazer sentido, tendo em conta a proximidade. Contudo, passaram 5 anos e lá continua abandonado. É um caso típico de entidades públicas que tratam do património público como se fosse seu. É isso que nos indigna e nos faz continuar a lutar por esta causa», critica.
Uma história com mais de quatro séculos
Poucos deverão saber, mas aquele edifício que, durante mais de três décadas, foi o Hospital Pediátrico de Coimbra, tem 410 anos de existência. Foi edificado em 1612 com o propósito de ser o dormitório das freiras do Mosteiro de Celas. E assim foi durante mais de dois séculos, até à morte da última freira do Mosteiro, no final do século XIX. Em 1892, a estrutura foi adaptada para receber o Asilo de Cegos e Aleijados mas, 40 anos depois, foi necessário readaptá-lo devido às necessidades da população, passando a ser o Sanatório de Coimbra.
No início da década de 1970, por acção do médico Bissaya Barreto, começou a sua transformação em Hospital Pediátrico, tendo sido inaugurado como tal a 1 de Junho de 1977. Assim foi até Janeiro de 2011, altura em que foi inaugurada o novo Hospital Pediátrico de Coimbra, na Avenida Doutor Afonso Romão.
