Vindos da Sé Velha, pela antiga Rua do Correio – actual Rua António Joaquim de Aguiar – a mancha densa de edifícios abre e desanuvia num pequeno largo em frente ao antigo Teatro Sousa Bastos (TSB). Para a população da Alta, este é o coração do bairro chibata, comunidade que mantinha uma amena rivalidade com a população salatina. Neste terreno sagrado funcionou um templo cristão durante quase um milénio, tornou-se uma casa de teatro por quase um século e ainda recebeu cinema por algumas décadas.
Gerações cresceram à sua sombra, estudantes e habitantes passaram, tornou-se ponto de encontro de famílias da cidade, crianças brincaram à sua frente, deslizando Rua das Esteirinhas abaixo, em tábuas esfregadas com cascas de banana. O TSB magnetizou públicos ao longo do Séc. XX, primeiro como teatro, depois cine-teatro, depois teatro novamente, até se esvaziar de todas estas funções no início da década de 90 e ficar completamente vazio, chegando afinal degradado aos nossos dias.
Pretérito imperfeito
Onde antes havia o TSB, existia a Igreja-colegiada de São Cristóvão, um dos mais antigos templos católicos de Coimbra, construído ad orientem no Séc. XII em estilo semelhante à Sé Velha, presumivelmente sobre um templo preexistente. A igreja estava muito deteriorada no Séc. XIX e foi demolida em 1859 para edificar o Teatro de D. Luís I, inaugurado em 1862. Este seria também demolido e daria lugar ao TSB em 1914, enquanto sala de teatro e animatógrafo, nomeado em homenagem a Sousa Bastos, conhecido dramaturgo e empresário teatral, tio do proprietário.
Tornou-se num dos pólos culturais da cidade, em competição directa com o Teatro Avenida por espectáculos e públicos. Épocas de esplendor alternavam com revezes financeiros, numa sucessão de programação e proprietários, em que se conta também a Coimbra-Films na década de 30. Em 1945, o TSB foi remodelado na feição art déco actual, desenhado pelo arquitecto alemão Willi Braun. Enquanto cinema acompanhou as vicissitudes das salas de cinema de bairro, que foram fechando sistematicamente, uma após outra a desaparecer na memória da urbe.
Pretérito perfeito
David Pinheiro foi projeccionista do TSB a partir de 1976. «Meu pai era projeccionista, minha mãe, grávida de mim, fazia a limpeza. Após a morte dele, fui para lá durante quatro anos. A minha missão no cinema era receber e montar as películas e projectá-las». Recorda-se dos momentos finais do TSB como cinema. Outros moradores recordam-se da exibição de clássicos, dos westerns, do cinema indiano, da «senhora Emília que vendia pevides e bananis e que era também parteira das mães de Almedina», de outras personagens e episódios.
João Maria André, encenador da Cooperativa Bonifrates, recorda: «A génese do edifício era teatro, depois foi transformado em cinema, numa altura ainda serviu para passar filmes de propaganda nazi e coisas do género. Houve depois ali uma fase a seguir ao 25 de Abril, em que o TSB foi gerido por uma cooperativa de empregados do [Teatro] Avenida. Depois o trespasse foi comprado por uma distribuidora indiana que exibia filmes indianos e, à meia-noite, passavam filmes pornográficos».
A Cooperativa Bonifrates foi a última companhia de teatro estabelecida no espaço, logo depois da saída da empresa indiana. João Maria André ainda se recorda da noite em que foram assinar o trespasse, «tivemos que esperar que terminasse a sessão do cinema pornográfico, para que nos dessem a chave». Estiveram em actividade de teatro permanente de 1982 a 85, com a companhia profissional, já extinta, e também com a companhia amadora. «Tivemos coisas esgotadas, fazíamos espectáculos nossos e espectáculos doutras companhias. O edifício estava de pé, a funcionar regularmente, e nós mantivemos ainda alguns ciclos [de cinema]. Lembro-me de um ciclo do Bergman, em colaboração com o Cineclube de Coimbra, que já não existe. A determinada altura resolvemos começar a tirar partido do bar e fizemos uma temporada de cafés-concerto, com grande êxito. O último espectáculo, era 1h da manhã, veio a polícia bater à porta, e pediram para fechar por causa do barulho. Isso deve ter sido em 87, e nunca mais fizemos espectáculo lá».
Depois da saída da Bonifrates, outras presenças passaram fugazmente pelo espaço, como conta Luís Fortunato: «Ensaiei aí com uns amigos, bateria, baixo e guitarras. Na época [a banda] não tinha nome ainda, mais tarde os que continuaram chamaram-lhe “Amantes de Maria”. Havia mais gente a usar o espaço, [também] do teatro». Em 1988 o estuque do tecto caia aos pedaços na plateia. Utilizámos uma sala da frente, talvez a do 3º piso, e pingava de vez em quando».
Presente do indicativo
A história recente do edifício é atribulada. Passou para a posse da empresa Eiclis no início dos anos 90, com o propósito de desenvolver um projecto imobiliário que foi encontrando diversos entraves pela complexidade do contexto. Ao conjunto urbano muito denso, juntam-se as camadas históricas.
Luís Sousa, arquitecto e activista com forte empenho no TSB, recorda que este, «em 1991 estava muito decrépito, em 1994 cria-se o movimento SOS – Salvem o Sousa Bastos, fez-se um percurso performativo do TSB até à CMC, o momento mais alto dessa contestação». Na altura, pretendiam concorrer com o TSB para a rede nacional de teatros municipais que se estava a delinear. O processo esmoreceu e surgiu, cerca de uma década depois, uma nova plataforma, o movimento Sousa Bastos Vivo. A ideia de tornar o TSB num teatro municipal foi reformulada e passaram a defender a criação de «uma casa da cidadania, [que] teria um condomínio administrativo, numa lógica de cowork, antes do conceito existir».
O processo foi sendo sucessivamente reformulado devido a diversas variáveis. Numa prospecção arqueológica ao lote foi (re)descoberto o cunhal da primitiva Igreja de São Cristóvão. A CMC foi negociando um híbrido com o promotor, que pretendia habitação, ao incluir progressivamente funcionalidade cultural. Neste longo processo de pára e arranca passaram 3 décadas, uma geração.
Para Luís Sousa, todo «este processo [do TSB, é] o retrato duma certa ineficácia das entidades públicas. Pegar num edifício deste volume e esquadrinhá-lo para habitação, para nós sempre nos pareceu ser [para] um sítio de produção cultural, espaço de cultura». Já para João Maria André: «O que se passa [no TSB], reproduz-se noutras coisas, com a excepção da CMC ter ficado com as salas de cinema do Avenida. A CMC não tem uma visão estruturada, tudo é casuístico, nasce pontualmente, ninguém pensou o que esta cidade deveria ser, nem que pulmões culturais devia ter. As coisas são feitas por razões de circunstância».
Neste passar de décadas, o edifício está actualmente em ruínas, sem cobertura, e sobram apenas as paredes exteriores, com o interior tomado pela vegetação. Para Lígia Gambini, que escreveu um livro sobre o TSB, isto «é uma lástima para a cidade, não só para a Alta».
Futuro composto
Alguns habitantes apontam sugestões para o futuro do edifício. Drika, da Real República Prá-Kys-Tão, na Casa da Nau, um edifício do Séc. XV a necessitar de intervenção urgente e situado diante do TSB, diz: «[Gostaríamos de ter] o teatro de volta e que fossem feitas parcerias com as repúblicas, com projectos para a comunidade local, estudantes e moradores».
João Maria André partilha desta ideia, sendo que para si, «faria sentido [localizar-se no TSB] uma companhia teatral ou transformar aquilo na sede de dois ou três grupos de teatro que estejam sem espaço, como a Marionet e outros grupos. Era a melhor forma de fazer jus à memória do Sousa Bastos como teatro».
Para Liliana Azevedo, cujo pai tinha uma tipografia no edifício encostado ao TSB, e onde mora ainda a sua mãe, refere: «A minha mãe, a única coisa que queria era que o edifício fosse reabilitado para que não continuasse a destruir a casa dela com humidade. Eu [ali] queria uma praça, se por acaso deitassem aquilo abaixo. Uma zona de lazer. Neste momento penso que ficava bem uma creche ou centro de dia. Espaço cultural poderia ser interessante, mas penso que o estacionamento deita tudo por terra».
«O que se passa [no Teatro Sousa Bastos], reproduz-se noutras coisas, com a excepção da Câmara Municipal ter ficado com as salas de cinema do Avenida. A Câmara Municipal não tem uma visão estruturada, tudo é casuístico, nasce pontualmente, ninguém pensou o que esta cidade deveria ser, nem que pulmões culturais devia ter. As coisas são feitas por razões de circunstância».
João Maria André, encenador da Cooperativa Bonifrates
Questionado sobre o tema, José Manuel Silva, presidente da CMC, não responde directamente à Coimbra Coolectiva, optando por remeter para um comunicado à agência Lusa, em que admite a possibilidade de posse administrativa do edifício por parte do município, sem precisar em que termos e condições.
Nuno Órfão, responsável da Eiclis, que integra agora o universo da empresa Arena S.A., prefere não adiantar muito. Demonstra até algum espanto e aparente desconforto pela referência a qualquer hipótese de posse administrativa por parte da CMC: «Reunimos com a CMC há um mês e estamos à espera das melhores condições para avançar com as obras». Refere ainda que o projecto será próximo do que está publicado na página da empresa, que prevê «a construção de 32 frações, 30 T0 e 2 T1, destinadas a residência de estudantes», em seis pisos, com algumas alterações, referindo ainda que «não está em condições para avançar com datas para o início das obras». O projecto inclui ainda, no piso térreo, 724 m2 para utilização cultural e uma ligação pedonal entre a Rua e o Beco de São Cristóvão.