Às vezes não parece, mas a cidadania é para miúdos. E não tem de ser aborrecida. Quando era estudante universitário e presidente da presidente da Associação de Estudantes da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, Bernardo Branco Gonçalves teve um sonho: criar uma ferramenta de aglomeração e de democracia 4.0. O termo 4.0 remete para o futuro, para uma Quarta Revolução Industrial das tecnologias para automação, a troca de dados, os sistemas ciber-físicos, a internet das coisas e a computação em nuvem, tudo com o foco na melhoria da eficiência e produtividade dos processos. Ora, para Bernardo era claro que era preciso fazer alguma coisa em relação à falta de participação cívica, fosse ela qual fosse, da escala escolar e universitária à política local, regional e nacional.
Foi assim que nasceu o MyPolis, uma plataforma mobile e web que é uma solução digital para a participação cívica, trazendo-a para o século XXI. Inspirado pela polis grega (cujo termo significa «cidade», em português), a ideia foi construir uma nova polis de millennials a participar politicamente através dos telemóveis, de forma simples e intuitiva. As principais funcionalidades eram a votação de propostas políticas e a criação de um perfil de cidadania que recorre à gamificação para aumentar o envolvimento. Começou por ser um fornecedor de software, mas passou a ser um parceiro que presta serviços para ativar a participação cívica. Em três anos foram muitas as propostas votadas e ideias lançadas para a comunidade que alimentam o My Polis, inclusive Coimbra, através de ferramentas originais como o jogo Agentes da Cidadania e as suas Assembleias de Transformadores Sociais.
Sabem o que são? O Ilpo Anton Lalli explica neste vídeo:
«Nós queremos que os alunos sejam, de facto, transformadores sociais», concluiu Ilpo, pedagogo social e gestor de projectos do MyPolis. Ele concebeu o jogo, juntamente com Mariana Galvão, para alunos/as e professores/as porem em prática um conjunto de missões de participação cívica e de transformação do território. Integra cinco missões, cada uma composta por vários desafios e uma meta que é a assembleia, onde todos podem partilhar, com representantes políticos locais, associações e outros agentes cívicos, o percurso realizado e as missões cumpridas. Mais do que querer que os jovens sejam transformadores sociais, a equipa MyPolis trabalha no sentido de dar «as condições e o espaço» para eles agirem sobre os seus próprios interesses e da comunidade onde se inserem.
Conversámos na Aldeia da Inovação Social, no Alentejo, e ficámos a saber que a metodologia de base é o chamado design thinking, orientada para a solução e assente em cinco dimensões:
Conhecer: os representantes, as instituições de participação democrática, a assembleia, a câmara municipal, a assembleia de freguesia. «O que é que aquilo faz? Muitas vezes já ouvimos falar tantas vezes e não sabemos o que é. Até votamos sem saber no que estamos a votar e nós queremos capacitar os jovens para o voto consciente e informado deles que são os representantes políticos do futuro», explica Lalli.
Explorar: ir para o terreno. A My Polis dá ferramentas de diagnóstico participativo para que os jovens realizem entrevistas a pessoas da comunidade, criem questionários, comuniquem, observem e assim trabalhem a partir das próprias experiências.
Idear: através de ferramentas como o brainstorming «divergir para depois convergir». «Temos ferramentas que ajudam a concretizar as tarefas de impacto social», continua Lalli.
Agir: mais do que criar propostas, queremos que os jovens as implementem. A My Polis acompanha a execução dos projectos concebidos ou apoiados pelos jovens.

Partilhar: «Eu acho que é a mais interessante e que por vezes esquecemo-nos, às vezes fazemos coisas magníficas pela nossa comunidade, mas ficam na invisibilidade», finaliza Lalli. Através das Assembleias de Transformadores Sociais, por exemplo, os jovens partilham as suas boas práticas com os autarcas, bem como o que fizeram pela comunidade e querem ainda fazer, e os autarcas agarram nas propostas através do jogo também.
O exemplo de Lagoa
No âmbito da iniciativa pública Portugal Inovação Social, o My Polis saiu do espaço virtual e implementou projectos em Lagoa, Portimão, Lousã e Vila Nova de Poiares. Soraia Correia, gestora de comunidade do projecto de Lagoa, no Algarve, conta-nos, a apontar para as fotografias penduradas na tenda do My Polis na Luz, que foi um verdadeiro sucesso. «Conseguimos mobilizar os dois agrupamentos de escolas, começámos com poucos professores e alunos, mas entretanto o nome do My Polis foi-se disseminando e os miúdos adoram o facto de se sentirem úteis e verem as suas ideias a crescer.»

A profissional, formada em Teatro e Educação, garante que as ferramentas de educação não formal motivam e inspiram os mais novos. «Eu digo-lhes: as vossas ideias não estão erradas. Todas estão certas, só têm de saber explicar por que é que são importantes e válidas», explica. Tudo começa com a identificação de problemas e soluções e a equipa My Polis ensina a saber ouvir, respeitar opiniões diferentes e trabalhar em equipa. «É a partir daí que nascem bons adultos», diz Soraia, e começa a contar a história da Feira Tem Tudo. O projecto de alunos do 8.º ano para ajudar pequenos comerciantes, agricultores e associações da localidade durante a plena pandemia de covid-19 que deu origem a uma iniciativa que rapidamente se tornou um evento identitário da cidade do Distrito de Faro, com cerca de 24 mil habitantes.
Os miúdos fazem-lhes todo o tipo de perguntas e quando, no caso do presidente da Câmara de Lagoa, ele disse que era formado em Desporto, eles reagiram com: “Mas tu…tu também jogas à bola?” Gostamos mesmo desta proximidade.»
Soraia Correira, gestora de comunidade MyPolis
O Município transformou o projecto escolar numa Festa da Juventude dedicada aos comerciantes e associações, mas virada para a faixa etária mais jovem e «para eles perceberam o que é que é feito em Lagoa e para eles se poderem promover». Foi um autêntico trabalho em rede e Soraia diz que a Festa já teve uma segunda edição este ano, com milhares de visitantes e que promete continuar a crescer. «Agora toda a gente fala na Festa da Juventude no Algarve!» O sucesso do My Polis – Cidadania 4.0 em Lagoa esta contado em livro, com mais de uma centena de páginas a relatar os 12 900 votos na plataforma, 1 300 propostas transformadoras desenvolvidos por crianças dos 10 aos 16 anos e submetidas, e mais de 75 implementadas. «Temos miúdos que já são repetentes porque pediram aos professores para continuar e é muito giro sentir o carinho que têm por nós. Eles sentem que lhes damos voz e oportunidade. Não impingimos nada, são eles que escolhem tudo, inclusive os temas de trabalho.»

Na página Facebook do My Polis é possível conhecer outros exemplos. Soraia Correia conta o de uma turma do 10.º ano que estava a trabalhar o tema da violência no namoro e fez uma dramatização onde, por exemplo, uma jovem numa festa era maltratada pelo namorado quando este a via a conversar com outro rapaz. No meio da decisão sobre se se tratava de uma cena de abuso ou não, a dramatização «congelava» e agentes da Guarda Nacional Republicana, APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima e Gabinete de Igualdade de Género do Concelho de Lagoa foram convidados a debater a questão e atirar soluções. «Foi um sucesso, tivemos um auditório cheio.»
Soraia jogou em casa. É algarvia e acredita que o facto de ser local foi uma mais valia para a implementação do projecto, além de ser gratificante «vê-los crescer e evoluir», referindo-se aos jovens conterrâneos. «No início pensam que aqueles que trabalham no município são pessoas inantingíveis, não é? E o que tentamos fazer é aproximá-los. A primeira coisa que fazemos, assim que começa a escola, é agarrar nos vereadores e levá-los às escolas, onde eles se apresentam e mostram que são pessoas normais. Os miúdos fazem-lhes todo o tipo de perguntas e quando, no caso do presidente da Câmara de Lagoa, ele disse que era formado em Desporto, eles reagiram com: “Tu…tu também jogas à bola?” Gostamos mesmo desta proximidade.»
Impacto
Recentemente, alunos/as e professores/as da Escola Gaspar Campello, na Freguesia de Campelos e Outeiro da Cabeça, em Torres Vedras, participaram no projeto MyPolis e transformaram a comunidade. A proposta de intervir ou substituir uma paragem de autocarro de forma a optimizá-la, tornando-a mais confortável e segura para os passageiros, foi concretizada com a colaboração da autarquia e junta de freguesia e deixou todos muito contentes. Outros exemplos de ideias transformadoras foram papelarias solidárias, plantação de árvores, hortas nas escolas e feiras solidárias.





Em Coimbra
Fazendo o registo no MyPolis e entrando na comunidade de Coimbra, nomeadamente da União de Freguesias de Coimbra (UFC), vemos uma série de propostas organizadas por temas. Escolhemos Ambiente e Sustentabilidade. Encontrámos 23 propostas de cidadãos, dos mais preocupados aos mais criativos. Ilpo Lalli disse-nos que o My Polis está a fazer uma implementação no 2.º e 3.º ciclos e secundário em Coimbra, com a UFC a desenvolver o projecto Agentes da Cidadania, orientado para a prática cívica eficaz.

Ilpo Lalli revela que fizeram um piloto de um jogo chamado Exploradores da Cidadania e que ele chama de «Jumanji da cidadania», em que os participantes quando o abrem são transportados para a «Estrada da Participação» com o objectivo de conhecer, explorar, idear e partilhar. Há cartas que trabalham competências comunicacionais e transmitem os conceitos de uma forma lúdica através, por exemplo, da expressão dramática. Como a carta «Shiu, diz-me por gestos», que significa que o participantes tem de explicar uma ideia sem usar palavras. «Isto é muito divertido para os miúdos, eles adoram fazer teatro, e ajuda a colar os conceitos.» A carta «Na ponta dos dedos» desafia a ir ao quadro desenhar soluções, que podem ser tão simples como a acção de descansar depois de trabalhar, e culmina com a criação de propostas a apresentar aos representantes políticos.
O My Polis está actualmente em 25 autarquias de Norte a Sul do país, mas o sonho é chegar ao mundo inteiro. «Isto é um projecto de co-construção. Temos uma equipa pedagógica e 14 pessoas a colaborar internamente, mas trabalhamos com todos os professores e autarcas no projecto, porque os feedbacks, as recomendações e avaliação de impacto fidedigna são essenciais», remata Ilpo Lalli antes de se despedir. Tem de ir participar numa acção da Aldeia.
De ano para ano, o projecto faz os seus aperfeiçoamentos. As contas apontam para mais de 25 mil jovens envolvidos no MyPolis ao final do ano passado que, apesar da ideia instalada de que não se sentem atraídos pelas assembleias tradicionais, 91,4% afirmaram que gostaram de conhecer os seus representantes políticos nas 115 Assembleias Participativas feitas pela organização. «É muito aliciante. Só um autarca que não tem interesse público de facto é que não fica interessado num projecto assim.» Como diriam as crianças, é um ovo podre.
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