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Seguimos os passos da comunidade judaica de Belmonte

Em 2019, foram registadas cerca de 130 mil entradas nos espaços museológicos de Belmonte. Muitos deles chegados de Israel e dos Estados Unidos, para visitar o Museu Judaico e também a Sinagoga e antiga Judiaria. É que a vila onde nasceu Pedro Álvares Cabral, hoje com cerca de 3 mil habitantes, abriga um importante e interessantíssimo facto da História judaica sefardita, relacionado com a resistência dos judeus à intolerância religiosa na Península Ibérica. 

Elisabete Manteigueiro, técnica da Empresa Municipal de Promoção e Desenvolvimento Social de Belmonte, guiou-nos numa viagem ao mundo desbravado por um polaco chamado Samuel Schwarz que, no início do século XX, encontrou aqui portugueses que mantinham a fé judaica em segredo. As práticas e características foram registadas numa obra pioneira, Os Cristãos-novos em Portugal no Século XX, originalmente escrita em português e publicada em 1925, que mudou o curso da História. Mas já lá vamos.

Centro histórico

Estamos no Largo do Pelourinho, na zona histórica de Belmonte. À direita, vemos a Loja da Judiaria com um candelabro  gigante de 9 braços jardim, a chamada Hanoukia. Elisabete avisa: Não é fácil falar da comunidade judaica de Belmonte, é uma história feita de memórias e muitas vezes sabemos das coisas só com base naquilo que ‘eles’ nos transmitem, continua. Eles são a comunidade judaica, que sobreviveu em segredo durante quase 5 séculos, muito graças às mulheres e à oralidade. No século XVI, quando os mouros foram expulsos da Península Ibérica, e as terras espanholas e portuguesas reconquistadas pelos reis católicos e D. Manuel, foi instaurada uma lei que obrigava os judeus portugueses a converterem-se ao cristianismo ou a deixarem o país. Muitos abandonaram Portugal, com medo de represálias da Inquisição, alguns converteram-se em termos oficiais mas mantiveram o culto e tradições culturais no âmbito familiar, outros isolaram-se do mundo exterior, cortando o contacto com o resto do país e seguindo as tradições à risca.

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Comunidade criptojudaica

Quando Samuel Schwarz, engenheiro, chega a Belmonte para trabalhar numas minas, descobriu os chamados marranos (alcunha alusiva à proibição ritual de comer carne de porco), judeus que mantiveram as tradições num secretismo tal que nem se (re)conheciam uns aos outros e pensavam que estavam sozinhos. É um caso excepcional de comunidade criptojudaica que só nos anos 70 estabeleceu contacto com os judeus de Israel e oficializou o judaísmo como sua religião. O Estado Novo, que durou de 1933 até 1974, fez com que a comunidade judaica de Belmonte se voltasse a fechar e só abrir em 1989, quando o segredo terminou oficialmente e foi criada a Associação de Judeus de Belmonte, hoje Comunidade Judaica de Belmonte. Desde essa altura que podemos dizer que a nossa comunidade tem crescido em termos religiosos e é activa, tem sinagoga e rabino desde 1996, cemitério próprio desde 2001, mas em número está a tornar-se reduzida, agora são cerca de 50 pessoas, explica Elisabete Manteigueiro.  

Tolerância

A nossa guia diz que há muitos jovens a fazer Aliá, que é o retorno à Terra Prometida, em Israel, como indica a Sefer Torá, o livro sagrado do judaísmo. Também é por uma questão de constituir família, é importante casar com alguém da própria religião, continua Elisabete Manteigueiro. Aliás, a técnica diz que se acredita que os casamentos mistos é que acabaram com as restantes comunidades do país, em cidades como a vizinha Guarda, por exemplo. Actualmente, há comunidades judaicas activas em Lisboa e no Porto, uma Chabad em Cacais e um Centro Judaico em Faro. A comunidade de Belmonte veio de Espanha e é sefardita e ortodoxa. Um dos aspectos de que mais se orgulha é o facto de haver sempre Minián para Sabat, o número mínimo de homens (10) para realizar a cerimónia que assinala o descanso semanal, desde o pôr-do-sol de sexta-feira até ao pôr-do-sol de Sábado. Vivem do trabalho em pequenos comércios e mercados e convive harmoniosamente com o resto da população, que sempre foi tolerante. Até celebram em conjunto a Hanouka em Dezembro, e os visitantes também podem participar na festa anual. O município distribui sufganiots, que é um doce típico.

Museu Judaico

O Museu Judaico de Belmonte é o primeiro do género em Portugal, inaugurado em 2005 e remodelado em 2017. Por estes dias está sossegado, devido à pandemia de Covid-19, e com horário reduzido: das 10h às 13h e das 14h30 às 17h30. A lotação é limitada a 10 pessoas de cada vez mas o museu vê-se bem em cerca de 1h, com tempo para mergulhar tranquilamente nas tradições e dia-a-dia da comunidade judaica de Belmonte e não só. Podem ver uma Sefer Torá original, que ainda é utilizada em algumas cerimónias, e outras peças que datam desde a Idade Média ao século XX, utilizadas por judeus e cristãos-novos no quotidiano ou nas práticas religiosas. Há fotografias lindíssimas espalhadas pelos corredores e objectos como roupas e instrumentos para cozinhar. Percebemos o que é a alimentação e rituais kosher, o que é uma mezuzá e uma menorá, como é importante a Pessach e como alheiras de carne de aves (em vez da carne de porco) serviram para enganar inquisidores.  

Antiga judiaria

Sainda do Museu Judaico e passando de novo pelo Pelourinho na Praça da República, subimos pelas ruas 1º de Maio e do Inverno, onde vemos marcas nas portas a indicar a Rota das Judiarias até ao Castelo de Belmonte, que vale a pena visitar. Contornando o castelo, entramos na antiga Judiaria. Actualmente a comunidade judaica está espalhada por toda a vila mas este continua a ser um local emblemático para eles e é onde fica a Sinagoga, conta Elisabete Manteigueiro. Não pudemos entrar no templo, inaugurado em Novembro de 1996, porque é sexta-feira à tarde e está a ser preparado o Sabat que implica, por exemplo, a proibição de 42 trabalhos como fazer lume, andar de carro e mexer em dinheiro. Não é possível visitar porque têm de preparar e confeccionar tudo antes do pôr-do-sol, justifica a técnica. Percorrendo a Rua Direita e a Rua da Fonte da Rosa, apercebemo-nos da multiculturalidade, porque também se vêem santos católicos nas portas entre outros símbolos. Pelo caminho, vimos a sede da Rádio Judaica Portuguesa, a primeira e única com emissão 24h por dia, 7 dias por semana.

Elisabete é de Belmonte mas diz que só começou a conhecer melhor a história da comunidade quando começou a trabalhar no Museu Judaico. E nos últimos 10 anos tenho-me apercebido de algumas diferenças, estão cada vez mais religiosos, até porque também eles têm um maior conhecimento da própria religião, conclui a técnica na despedida, voltand a evocar Samuel Schwarz. O engenheiro que começou um ciclo de viagens pela Europa até ao Cáucaso e Azerbeijão, passando pela Polónia, Itália, Espanha e que se fixou, constituiu família e naturalizou-se português. Morreu em 1953, antes de ver Os Cristãos-novos em Portugal no século XX traduzido para inglês e, mais recentemente, já no século XXI, para hebraico. 

Texto e fotos: Filipa Queiroz

Viajámos até Trancoso a convite do Turismo do Centro e a propósito do lançamento dos roteiros “Road Trips Centro de Portugal – 1 é bom, 2 é ótimo, 3 nunca é demais”. Podem ver o roteiro da Região Serra da Estrela aqui

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