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União 1919: o coração da cidade ainda bate

Contamos a história do mítico clube de futebol «dos operários» pela voz dos seus adeptos e às portas de um derby clássico com a Académica SF, dia 4 de Dezembro.

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Fotografia: Mário Canelas, fotos de arquivo gentilmente cedidas por Rambos da Arregaça

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É tarde de Domingo no Estádio Municipal Sérgio Conceição, as bancadas centrais vão preenchendo os seus lugares ainda à hora do apito inicial, os tons de azul e vermelho surgem em cachecóis, camisolas ou casacos, mas é no varandim entre a bancada e o relvado que se foca a nossa atenção. As idades variam entre os 12 e os 74 anos, aperaltados a rigor, a empunhar as insígnias da equipa da casa. Zé é o mais novo, que ganhara o hábito de ver o União de Coimbra pela mão do avô. Pedro Ribeiro, João Moreira e Mário Rui juntam-se a Joaquim Amaro, o sénior da torcida que carrega há décadas a bandeira da equipa do coração. 

Teríamos, porventura, de recuar até 2 de Junho de 1919 para compreender o ambiente que permitiu um grupo de jovens do mundo laboral ligados ao comércio e indústria criar o seu próprio clube de foot-ball, no coração da cidade, junto à Palmeira norte do Largo de Sansão, actual Praça 8 de Maio. As palavras de Valdemar Andrade no prefácio de  Coimbra Profunda, livro que reúne registos e apontamentos de história do Clube de Futebol União de Coimbra, dão um breve contexto:

Trata-se de uma colectividade eminentemente popular, cuja vida se tem desenrolado numa cidade com características próprias, na qual perdurou, durante longo tempo, uma nítida separação entre estratos sociais distintos. (…) a existência de uma universidade atraía a Coimbra estudantes das mais diversas regiões, que se integravam na população da cidade enquanto duravam os seus estudos, mas tinham, em regra, um estatuto social favorecido. (…) Por outro lado, a própria organização social citadina – que precisava dos estudantes para assegurar receitas necessárias ao funcionamento da economia local – espontaneamente lhes facultava facilidades de que não beneficiam «os futricas». Nesse enquadramento, não pode surpreender que surgisse e se avolumasse uma rivalidade/conflitualidade que alastrou ao campo do desporto, opondo a Académica  ao União. Estão ainda na memória dos mais idosos alguns conflitos, por vezes violentos, em que a oposição estudantes/futricas se identificava, no essencial, com a competição Académica/União. 

A rivalidade de outros tempos

«Sempre gostámos do União, porque era e ainda é uma equipa de trabalhadores, formada por pedreiros, serralheiros, latoeiros, sapateiros» conta Joaquim Amaro, sócio do clube desde os 17 ou 18 anos. «Eles [Académica] metiam sempre o pé em cima do nosso pescoço, nunca nos deixaram ganhar nada, sempre tiveram regalias da arbitragem, da polícia, da câmara, do estado», acusa Joaquim Amaro, ao reflectir sobre algumas memórias e vivências do clube. 

«Mesmo não tendo vivenciado isso, tenho muito essa sensibilidade pelo meu tio, pelo meu pai, pelo meu avô. Nos anos 60, 70, todos os comerciantes velhos da baixa eram do União, porque a Académica era um clube elitista, os doutores dos anos 60 jogavam na Académica, quem não tinha estudos jogava no União», conta Tiago Coelho, membro dos Rambos da Arregaça. Mário Rui, outro elemento da claque, reforça a ideia que esse sentimento se esbateu, assim que se inicia alguma universalização do acesso ao ensino superior, em particular após o 25 de Abril. 

A rivalidade da qual nasce o Clube de Futebol União de Coimbra é vivida, nos dias de hoje, de forma diferente, pelo menos para os adeptos mais jovens, que não experienciaram antagonismos de classe e privilégio tão vincados e a materialização dessa disputa nas primeiras competições de âmbito regional. Pedro Ribeiro é um dos membros da jovem claque do União de Coimbra, os Rambos da Arregaça, e explica que sentia mais ressentimento do lado da Académica do que por parte da torcida unionista. «Sou capaz de ter sentido ódio à Académica quando criaram uma equipa B, mas isto é um facto de futebol, porque ao introduzir as equipas B na II Divisão o União teve de descer para a 3ª.» Pedro explica a indignação pela alteração das regras a cinco jornadas do final do campeonato, na época 2003/2004.

«O rival do União continuo a dizer que é a Académica Secção de Futebol. Eu não sinto grande rivalidade com a Académica Organismo Autónomo de Futebol (OAF), porque nunca nos cruzamos, mas convivemos com malta que tem 70 anos e que vivenciaram aquilo, neles notas que têm ali um bichinho, tanto que os tratam por sintéticos», conta em tom de brincadeira. 

Pedro recorda um dos momentos onde a expressão revela melhor essa celeuma entre as duas esquadras da cidade. «Numa reunião para decidir colocar o relvado artificial [no Campo da Arregaça], houve uma pessoa que chamou relvado sintético e um membro da mesa levanta-se: “não é relvado sintético, sintéticos são os outros gajos, isto é relvado artificial.” A expressão é uma crítica explícita à transformação da Académica em Clube Académico de Coimbra, em 1974, depois de perder o apoio da própria Associação Académica de Coimbra e, mais tarde, da transformação em Académica OAF. «Perderam a identidade com a intenção de manterem a posição na I Divisão», elucida Pedro Ribeiro.

A ligação familiar ao União de Coimbra

A ligação ao emblema azul e vermelho da maioria dos membros dos Rambos da Arregaça dá-se, de forma geral, pelas raízes e laços familiares. Pedro Ribeiro recorda o tio, latoeiro de profissão e morador do Bairro Norton de Matos, que puxava o seu pai para os jogos, o que o levava a assistir às partidas ainda em miúdo. Tinha já estojo, canetas e cadernos de escola com o emblema do União. Achou que tinha de ajudar o clube e fez-se sócio em 1991. 

A história de Mário Rui é semelhante à de Pedro. Começou a ir aos jogos com o avô, «porque o pai é um bocado vira-casacas, tinha cartão de sócio do União e da Académica», brinca Mário, ao recordar, também, as idas ao Estádio Municipal acompanhadas de uma boa dose de pevides.

Tiago Coelho lembra o avô que era correspondente na Rádio Altitude e realizava a cobertura dos jogos dos Campeonatos Nacionais. O seu pai, João Coelho, tornara-se jogador do União ainda como juvenil. Após o empréstimo à Naval 1º de Maio, regressa ao clube de Coimbra, onde foi capitão durante oito anos. «Uma lenda do clube» explica Tiago, que lhe fazia companhia como mascote da equipa sénior. 

A família de João Moreira não é de Coimbra, veio para cá morar. Aí «foi mesmo uma questão de simpatia, não tem história nenhuma, gosto porque gosto», justifica o sócio mais mediático do clube, co-criador da série humorística Bruno Aleixo. 

O nascimento dos Rambos da Arregaça

A jovem claque do União de Coimbra surge, inicialmente, na tentativa de dar um nome ao grupo de Messenger onde se combinava o ponto de encontro para cada partida. «Existiam os Ambrósio Ultra Comandos da Arregaça, uma banda até meio jocosa que passava na RUC, e sempre achei que os comandos da arregaça fossem a claque aqui do União. Tentámos perceber quem é que eram e não descobrimos, pensámos: ficamos com o nome ou mudamos», conta João Moreira. Mário Rui sugeriu que se pedisse autorização para utilizar a designação “Comandos da Arregaça”, caso não fosse possível ficariam como Rambos da Arregaça, nome que ganhou entusiasmo do restante grupo. 

O nome sugerido na brincadeira acabou por ficar e o primeiro rascunho vislumbrava já a fisionomia da famosa película com Sylvester Stallone. De início, a claque ainda optou por colocar o rosto de um dos jogadores, no caso o de Pedro Cortesão, a quem chamavam «o nosso rambo», o jogador mais «raçudo». Porém, o impensável acontece e Pedro Cortesão vai jogar para a rival Académica. «Aí eu disse: “acabou a conversa, é o Stallone, se escolhemos outro e vai também para a Académica não vale a pena», narra Mário Rui. 

As comemorações do centenário coincidem com a criação dos Rambos da Arregaça, um novo alento ao entusiasmo e persistência do Núcleo de Veteranos do União de Coimbra, que nunca permitiu que a chama pelo clube desvanecesse, mesmo perante os anos difíceis sem verbas para inscrever equipa sénior, com a abertura do processo de insolvência por falha de pagamentos às finanças, segurança social e ex-jogadores e consequente extinção do clube em 2016. Numa tentativa de criar um novo rumo à longa história da equipa, foi refundada como União 1919.

Espírito do «Vai Tudo»

O apito para o intervalo é um momento especial para os Rambos, o espírito de convívio continua no estacionamento do estádio. Joaquim Amaro abre a bagageira para partilhar merenda com os camaradas de torcida, manter vivo o antigo espírito do «Vai Tudo», expressão e nome da antiga falange de apoio, onde o convívio era quase mais importante que a peladinha de futebol (vejam marcadores acima). 

O próprio Joaquim recorda esse tempo com saudade e dos elementos que incentivaram aos almoços, jantares e grandes romarias para apoiar a União de Coimbra, em particular a figura de João Marinheiro, «o da Bandeira», como também era conhecido. «Muitos deles partiram, outros deixaram de ser sócios, mas mantive-me sempre com a minha bandeirita às costas em todos os campos». Agora são os Rambos que fazem companhia e festa com Joaquim Amaro, feito sócio honorário nº 1 graças «à  velhice». «Gosto muito deles, estou sempre com eles, por isso levo sempre um queijinho, um chouriço, um vinho». 

A turma dos Rambos ofereceu uma nova bandeira a Joaquim Amaro, mais leve que a habitual companheira de cetim. Emocionado, conta que a antiga está guardada: «a minha família sabe [que] essa, quando eu falecer, vai comigo para a cova.»

50 anos da subida à I Divisão

Pierre Marie e Eduardo Albuquerque dão vida ao projecto Rebobinar que visa adaptar a história a novas linguagens e não apenas pela forma tradicional, ou seja, «fazer uma mediação entre investigação, os documentos de arquivo, os públicos e resgatar uma velha ideia utilidade das ciências sociais», explica Pierre. 

Ao desenvolver uma secção dedicada ao ano de 1972, perceberam que se comemoram os 50 anos da primeira e única presença do Clube de Futebol União de Coimbra na I Divisão. A equipa Rebobinar começou a partilhar nas redes sociais o onze inicial previsto e, depois, o resultado da respectiva jornada, tal como se de um campeonato actual se tratasse, num primeiro teste aos adeptos e sócios do União, para ver se eles estavam por aí.

 «O que nós achámos interessante também foi, através do União de Coimbra, resgatar histórias da baixa, inseridas quase num projecto maior. História dos operários, história das outras profissões de Coimbra. Dá uma pluralidade e uma riqueza a esta cidade muito maior do que dizer que é apenas os 500 metros à volta da torre da universidade. O futebol é uma das coisas que permite mais rapidamente chegar às pessoas e exprimir identidades.» 

Eduardo lembra um título do jornal A Bola, aquando da subida à principal competição, designando a equipa por «Operários de Sangue Azul», «a associação entre União de Coimbra e a classe operária, que já não existe, mas que existia quando subiram para a I Divisão». Na zona da baixa de Coimbra, o apego à equipa era tanto que mesmo uma subida à II Divisão era celebrada com enchente na Rua da Sofia. Difícil, nessa altura, seria encontrar uma loja que não fosse sócia do Clube de Futebol União de Coimbra.

Mesmo não sendo possível justificar por causa e efeito a perda de força do clube, há um paralelismo com o fecho das indústrias, dos grandes comércios e da vocação comercial da baixa, diz-nos Pierre Marie. «Se formos a ver as equipas que hoje estão na I Divisão, fora Lisboa e Porto, são tudo grandes centros industriais: Braga, Guimarães, Barcelos, Famalicão, Vila do Conde, Moreirense», destaca Eduardo.

As identidades quase excludentes entre as duas equipas diluem-se .«A Académica, depois do 25 de Abril, deixou de ser um clube de estudantes, deixou de se chamar Académica durante 10 anos e quando regressou acabou por ser um clube com a mística e ligação à universidade, mas já não era o clube dos estudantes. Por isso é que há aquela coisa bizarra em Coimbra de ter uma Secção de Futebol e um OAF, refere Pierre.

O Rebobinar irá continuar a partilhar e desenvolver conteúdo multimédia durante o ano, com testemunhos de alguns protagonistas dessa época histórica, reforçando a importância da memória oral como objecto de compreensão e história e dos contextos e, do mesmo modo, «mostrar que foi possível subir à I Divisão», acrescenta Pierre Marie.

Os Rambos da Arregaça alertam-nos para uma data importante no calendário: 4 de Dezembro. Volta a recordar-se a aura dessa cidade dividida, no Estádio Municipal. União 1919 defronta a Académica SF e as bancadas hão-de encher-se como antigamente. Se algum adepto perguntar «quem é que vai» ao jogo? Não haverá dúvidas na resposta: Vai Tudo!

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