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Vai-se andando | Qual o futuro das calçadas portuguesas?

De um lado, a beleza e a tradição do «tapete de pedras» que é Património Cultural Imaterial de Portugal. Do outro, o desafio da manutenção e a segurança para os peões – critério do urbanismo atual, focado na acessibilidade. Será o declínio do famoso pavimento português?

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Fotografia: Mário Canelas

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Ao longe, é possível ouvir o assobio afinado de um homem a trabalhar e a chamar a atenção de quem passa, especialmente turistas. Soma-se ainda às melodias, que ecoam nas paredes da vizinhança, o ritmo percussivo do martelo ao encontro das pedras. É assim que Armando Rodrigues passa os dias: entoando canções, burilando o calcário e respondendo com simpatia a quem o cumprimenta. Armando, 51 anos, é de facto um artista como poucos – não da música, mas da arte de moldar calçadas portuguesas.

«Este é o melhor emprego do mundo, faço com gosto», comenta, sorridente. Porém, assim como não falta trabalho ao calceteiro de Coimbra, sobram críticas às calçadas portuguesas, que são escorregadias, de cara manutenção e apresentam, muitas delas, irregularidades de níveis que dificultam a circulação de pessoas. No quarto e último artigo desta série, a Coimbra Coolectiva ouviu histórias de satisfação e tombos, elogios e reclamações e colocou sobre a mesa da gestão e da população o futuro do que o New York Times classificou como «tapete de pedras».

«A calçada de que nós temos muito brio em Portugal, nomeadamente nas zonas mais históricas, é um pavimento como todos sabemos desconfortável e inseguro. E, no caso em concreto de Coimbra, isso acontece pelo facto de ser uma pedra muito calcária e por isso muito polível. Ela, com o tempo, com a chuva, com a oxidação e com o desgaste, vai cada vez sendo mais polida e escorrega imenso. Com uma pequena deformação pode levar a quedas», descreve Ana Bastos, vereadora da mobilidade da Câmara Municipal de Coimbra. Ela, que já «sentiu a tendência do escorregamento em cima dos meus saltos altos», nunca chegou a ir ao chão. Porém, infelizmente os casos de quedas e pessoas magoadas ao longo desse pavimento não são raros.

Pedras e quedas no caminho

Jefferson Felipe Silva é quase um colecionador de tombos nas calçadas de Coimbra. Foram seis quedas num intervalo de quatro meses. «A maioria aconteceu em escadas, com degraus escorregadios e também em ladeiras. Uma delas inclusive foi numa zona plana, mas a calçada estava desnivelada – outra queda», conta.

Do alto dos 1,87m de altura, as quedas trouxeram perigo à saúde do estudante de doutoramento em Ciência e Tecnologia da Informação da Universidade de Coimbra (UC). «Os tombos resultaram em dores nas costas e arranhões nas mãos – além de seguir com a roupa suja para o trabalho. Já vivi em locais com invernos mais rigorosos, muita chuva, mas nunca havia passado por isso. As calçadas portuguesas são bem escorregadias e nem todos os trajetos têm aquela linha de apoio central, com material mais aderente».

Morador da Baixa de Coimbra, Jefferson caiu no trajeto de ir e vir ao trabalho. Uma das situações aconteceu na Rua João de Ruão, perpendicular à Rua da Sofia, onde uma grande quantidade de autocarros faz paragens. «É uma calçada de grande fluxo de pessoas e muito apertada. Além disso, os comerciantes colocam mesas e cadeiras no lugar de passagem das pessoas. Tudo isso, aliado à pressa para ir ao trabalho, provoca acidentes», comenta. «Eu gostaria de saber que a cidade tem um planeamento para a pessoa caminhar tranquila, sem competir com carros, com trajetos eficientes. Eu mesmo, algumas vezes, faço um caminho mais longo porque os passeios têm mais aderência e são mais seguros».

«Uma corrida de obstáculos»

Quando quer ir da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra às cantinas mais próximas, a estudante de Jornalismo Francisca Tralhão, 24 anos, sabe que terá desafios pela frente. Utilizadora de cadeira de rodas, Francisca conta que as calçadas portuguesas «faziam um bocado de impressão, principalmente quando não estavam niveladas», mas hoje sente que aprendeu a lidar um pouco melhor com o pavimento. «No percurso para as cantinas preciso sempre de ajuda. Os caminhos não estão propriamente no seu melhor estado, em termos de nivelação», comenta.

A partir dessa experiência, Francisca e algumas amigas decidiram gravar um vídeo como trabalho de avaliação de um componente curricular do curso. O guião era simples: mostrar no ecrã os desafios que a pessoa utilizadora de cadeira de rodas enfrenta para se deslocar por poucos metros da sala de aula até uma cantina universitária. As imagens apontam a carência de cuidados com quem precisa utilizar esses espaços públicos numa das áreas mais populares e visitadas de Coimbra, o Polo I da UC: são trechos com pedras retiradas, desníveis elevados e lancis sem qualquer rebaixamento para a passadeira. A dado momento, nas gravações, uma das amigas de Francisca comenta: «Isso é mesmo uma corrida de obstáculos!»

Falta manutenção e profissionais

Mesmo sem conhecer as histórias de Jefferson e Francisca, Ana Bastos comenta sobre os riscos de quedas, a pouca segurança para utilizadores de cadeiras de rodas «pois gera muita trepidação e nas cadeiras de rodas a trepidação é extremamente desagradável». A vereadora defende que as calçadas portuguesas devem ser mantidas, por uma questão cultural, de identidade, em zonas mais históricas, consolidadas e centrais. E aponta as vantagens do pavimento.

«Temos um material, indiscutivelmente do ponto de vista visual, muito interessante. Também costumo atribuir outra grande vantagem à calçadinha de calcário que é a flexibilidade. Como em Portugal há pouco planeamento das infraestruturas subterrâneas, estamos constantemente a abrir valas que nos obrigam a repor o material. Quando é um material contínuo, como é o caso do material betuminoso ou do cimento, fica tipo um remendo. A calçadinha não tem esse problema, porque se levanta, repõe e não fica com aspeto de remendo».

As desvantagens, contudo, se impõem. «É um material francamente mais caro do que outros materiais, até mesmo pré-fabricados que possam existir -, mas ainda, é pouco seguro e confortável. Além disso, há um problema de formação. Se ela não for corretamente construída, com uma base devidamente consolidada, podemos ter deformações no passeio que podem levar a quedas – nomeadamente por parte dos peões mais idosos», explica a vereadora da Mobilidade.

Manutenção e instalação correta das calçadas são aspetos essenciais que o calceteiro Armando Rodrigues conhece bem. «Eu comecei muito cedo, ainda criança. Saía da escola, comia em cinco minutos e lá ia ao pé de um velho que gostava de ensinar. Eu olhava para aquelas calçadas como puzzles. Isto nasce com a pessoa. É uma profissão dura, os jovens não querem aprender», ele diz.

Os calceteiros são cada vez mais escassos em Portugal. A única escola para formação desses profissionais, em Lisboa, foi instalada em 1986 para assegurar a continuidade especializada da profissão. Porém, apesar da gratuitidade do curso, a turma que estava previsto que iniciasse a 25 de Outubro deste ano foi transferida para 2023 por falta de candidatos, segundo a secretaria das Escolas de Jardinagem e Calceteiros. Além da ausência de novos calceteiros formados, os que estão em atividade são em número muito aquém do necessário. Dados da Associação da Calçada Portuguesa apontam que de 1927 a 2020, somente em Lisboa, o número de calceteiros caiu de 400 para 18 – e destes, apenas 11 estão em ação. Por isso, a manutenção das calçadas portuguesas pode ser demorada e, quando feita, não tão especializada.

«Isso aqui nunca se acaba»

O esmero com que Armando Rodrigues molda a pedra, faz o encaixe na areia compactada e molda figuras nos passeios atrai estudantes, turistas e moradores dos arredores, admirados com o trabalho. «Senhor Armando, o meu reconhecimento por representar tão bem, pedra a pedra, uma técnica que ganhou expressão em quantidade e qualidade extraordinárias, como um traço indiscutivelmente marcante na nossa matriz identitária, identificando Portugal no mundo.»

O texto, que bem poderia ser uma homenagem oficial, foi publicado na rede social Facebook por uma moradora dos arredores onde o calceteiro estava a fazer o seu trabalho. Um reconhecimento espontâneo ao qual Armando não tinha ainda tido acesso. «Estão a falar de mim na internet?», surpreende-se, e brinca: «Acho que estou a fazer muito barulho».

Hoje não falta trabalho a Armando, mas já foi diferente. Faltou trabalho em Portugal e ele partiu para Manhattan em Nova Iorque, nos Estados Unidos da América. «Fui trabalhar com granito grande, paralelo. Fui tratado cinco estrelas, mas passei cinco meses lá e disse: “Chega, quero voltar pra casa”. A segurança de estar perto da família é importante», conta.

A experiência do profissional que começou menino – deixou a escola cedo e nunca fez um curso, nem mesmo de calceteiro -, fez com que Armando se desenrascasse no inglês, e não só. Ao ouvir a conversa entre um casal de turistas franceses, que parou para admirar o trabalho e falava sobre a complexidade da montagem da calçada portuguesa, disse prontamente: C’est si facile, madame. E seguiu explicando um pouco do próprio ofício, em inglês. «Este é o francês básico que aprendemos na escola», revela.

Enquanto conversa, o calceteiro de Coimbra acena para pessoas que o cumprimentam e assobia, trabalhando sempre de forma leve, apesar da dureza das pedras que quebra, segurando com uma das mãos. «Há quem veja essa profissão com maus olhos, mas é um trabalho com muitos detalhes, demorado. É possível fazer até 20 metros de linha de calçada, por dia, se for da mesma pedra ou um modelo simples. Mas uma figura com detalhes pode levar em média quatro horas, cada uma, para compor.» Enquanto explica, a mulher que o auxilia vai e vem com um carrinho cheio de pedras prontas para serem moldadas nas mãos de Armando. Cidália está focada no trabalho, que é pesado. Em algum momento, uma informação vem à tona: ambos são marido e mulher, casados há 32 anos. Ela, há 17 anos, começou a acompanhar o marido como assistente de calceteiro. Não parou mais. «Com o trabalho também passa o tédio», garante. Ela sorri.

O casal tem uma filha e aguarda a chegada da primeira neta. Armando não teve a quem transmitir o conhecimento de calceteiro. Ele sabe da escassez de profissionais e não perde o sorriso mesmo quando perguntado sobre a possível substituição das calçadas portuguesas. «É assim, isto aqui nunca se acaba. Podem mudar o material, mas o que o se pede é esse tipo e trabalho, por tradição. Essa é uma marca portuguesa.» O que se pode afirmar, até aqui, é que nas regras do novo urbanismo o chão de português se mantém no jogo – e as pedras estão rolando.

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