Contribuir small-arrow
Voltar à home

Opinião | Em memória de Jorge Vilas

Por Abílio Hernandez

Partilha

Fotografia: Tiago Cerveira

O Jorge deixou-nos. Não levou consigo argamassa nem tijolos, porque a amassou e os gastou todos, e com eles as mãos solidárias, na construção do Bairro da Relvinha, em Coimbra. Não sabeis onde fica a Relvinha? Não tem importância, Coimbra também não sabe. Nunca soube.

Falar do Jorge Vilas e das mulheres e homens da Relvinha é falar do futuro. Foi isso que lhes disse, numa tarde de inverno, em 2018:

Amigo Jorge Vilas, amigos do Bairro da Relvinha,

Quero falar-vos do futuro.

Não daquele futuro que preenche os nossos devaneios individuais, que por vezes nos confortam momentaneamente, mas que, no íntimo, cada um de nós sabe que são apenas isso: devaneios. Simpáticos, por vezes com alguma beleza, mas apenas devaneios, que vão substituindo as utopias que se perdem nas curvas da História.

Não, quero mesmo falar-vos do futuro: daquele que sonhamos, não isoladamente, mas todos, daquele futuro que se quer casa, que sabemos sermos capazes de pensar, lutar por ele e agarrá-lo com as mãos incontáveis dos homens e das mulheres que o sonham.

Falo, portanto, da Relvinha.

De quem a sonhou, de quem a construiu pedra a pedra, tijolo a tijolo, árvore a árvore, casa a casa, abraço a abraço. Falo de toda esta gente que ensinou tanta outra gente, que ensinou à cidade (que é normalmente lenta a aprender) o que é transformar um sonho em vida.

Falo de todos, do Jorge Vilas, das companheiras e dos companheiros que têm participado nesta viagem longa, que ainda não terminou, que na verdade não queremos que termine, porque haverá sempre mais futuro a sonhar e a transformar em presente. E falo também, e sobretudo, dos mais pequenos que andam por estas ruas, tão pequenos que nem sabem ainda que fazem já parte desse futuro.

Quando fui convidado pelo Governo de António Guterres para presidir a, Coimbra Capital Nacional da Cultura, o Ministro José Sasportes propôs-me um tema: Cultura e Ciência. Vim para casa, escrevi o projeto e acrescentei uma palavra ao tema: Cidadania. Sem o saber, eu estava já a partilhar o sonho da Relvinha. Depois vieram os jovens que a Pro-Urbe soube aglutinar e que pensaram para o Bairro um projeto destinado a Semear Relvinhas. E eu soube então que a palavra que tinha acrescentado à proposta ministerial (e que o Ministro prontamente aceitou) era a mais importante de todas, porque, sem ela, a Capital da Cultura teria ficado irremediavelmente mutilada.

Essa cidadania foi projetada, concretizada e festejada por construtores de sonhos muito especiais: os operários da Relvinha e os reclusos do Estabelecimento Prisional de Coimbra, que quero evocar aqui e que, perante o nosso olhar de espanto e sem outro horizonte que não o de muros vigiados, construíram um barco para partirem em lusca da liberdade impossível. Ali, no Estabelecimento Prisional, disseram-nos, ali só se entra se vier às fatias.

Aqui, na Relvinha, não havia muros vigiados. Mas havia outros. Os muros invisíveis, que teimam em criar obstáculos entre um grupo de cidadãos e o resto da cidade. Aqui havia os despojos de muitos dias, marcados pelo trabalho que cansa, que consome, que vai minando lentamente o corpo de quem apenas tem como sonho de futuro fazer isso mesmo, trabalhar, trabalhar sempre, porque, quando o trabalho falta, pode vir o desânimo, a marginalização, a exclusão. Uma cidadania diminuída.

Pois estes homens e estas mulheres, que nada tinham de seu senão o trabalho, fizeram das mãos o instrumento de um notável ato de amor: construíram a Relvinha.

E quando, em 2003, aqui chegaram e se juntaram aos que tinham erguido o Bairro do chão, os jovens sonhadores da Pro-Urbe sentiram que iam construir, em conjunto, o mais solidário projeto de Coimbra Capital Nacional da Cultura. E construíram: uma celebração da dignidade, da cidadania e da liberdade. Eles todos e mais as 2500 flores, que se desprenderam da rede suspensa sobre o pátio, caíram ao chão e se ergueram de novo. Podemos dizer que também essas flores cumpriram o seu papel, bem como a rede que a custo as sustentou. Porque, como bem se recordam os que aqui viveram aqueles dias de agosto, Quando Estiver Lá em Cima Estará Completamente à Vontade! E estiveram.

Em boa verdade, só queria mesmo falar-vos do futuro: é preciso continuar a semear Relvinhas. E é preciso que semear mais Relvinhas não seja um trabalho a termo certo, mas um processo a tempo indeterminado, em que todos – cidadãos e instituições que nos representam na cidade – sejamos capazes de reinventar novas formas de intervenção cultural e de refletir sobre o próprio conceito de cultura. E se não fizermos isso já, quando voltaremos a poder fazê-lo?

Há, ainda, um novo SAAL que é preciso levar por diante. E a Cultura deve ser o seu instrumento principal. Só assim é possível derrubar os muros imaginários que continuam a separar o que devia ser inseparável. E construir a cidade inclusiva, a cidade hospitaleira, a cidade da cidadania plena.

Como vos disse no início, eu só queria mesmo era falar-vos do futuro.

Até sempre, Jorge!

Abílio Hernandez é professor da Universidade de Coimbra.

Contribuir small-arrow

Discover more from Coimbra Coolectiva

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading