Em 1928, Álvaro de Campos escrevia: «Não sou nada / Nunca serei nada / Não posso querer ser nada/ À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo». Talvez fosse mais ou menos o que diria a Baixa se falasse e é por ela que dizem o que lhes vai na alma frequentadores, moradores, trabalhadores, visitantes, investidores e apaixonados.
No dia 11 de Junho de 2022, Nelson Martins montou uma Cabine da Palavra na Loja Zero da Bienal de Arte de Coimbra, na Rua Adelino Veiga, e o vídeo em cima é o resultado. Durante o evento de ocupação da Baixa Rua Zero – (Re)imaginando Coimbra, inserido na programação paralela da mega iniciativa internacional pela sustentabilidade e espírito comunitário, colaborativo e cultural New European Bauhaus, o colaborador da Anozero lançou o repto a quem passasse: conte-nos a sua relação com a Baixa de Coimbra e o que gostava que lhe acontecesse.

«Uma coisa que foi muito legal, que depois eu saquei, é que as pessoas falam de dentro de uma vitrine, então, de certa forma, elas se transformam em produto. Está ali o presidente da Câmara, estão ali outras pessoas… mas [produto] não de uma forma pejorativa! A gente entende que nós somos, de facto, de certa forma, um produto. E isso também tem muito a ver com a arte contemporânea, porque uma pessoa está de alguma maneira performando ali. O que é que as pessoas vêem numa vitrine? Um produto que querem consumir. E elas estavam a ver uma coisa ali que não era para consumo imediato. O que é que elas estão a consumir ali? As memórias, as ideias. E eu acho que se as pessoas não olharem a Baixa como um produto, ela nunca vai acontecer. Tem de haver um interesse comercial, algo profissional, no sentido de reerguer a zona.»
Natural do Rio de Janeiro, Nelson Martins é CEO da Fase 10 – Ação Contemporânea, uma empresa multidisciplinar que actua na concepção, gestão, planeamento, coordenação e produção de projectos/eventos culturais e socioeducativos que visam a valorização e fortalecimento da imagem de empresas privadas/públicas no Brasil. Doutorando em Arte Contemporânea no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra, adaptou à Rua Zero a iniciativa de cariz político que já tinha levado a cabo numa escola e um mega evento no Brasil, o Babilônia Feira Hype.
Usando uma câmara de vídeo ligada a um ecrã, que transmite o que está a ser filmado em tempo real, com o apoio técnico de Eduardo Albuquerque, Nelson desafiou os presentes a desfiarem o seu novelo de passados e futuros para a cidade na vitrine da Loja Zero da Bienal, espaço ocupado temporariamente. Entre «doutores e futricas», naturais e adoptados, até um antigo e um actual autarca, duas dezenas partilharam as suas reflexões, críticas, comentários, memórias e desejos do momento, sem guião e sem rede, apenas com sentido de lugar.
Carlos Antunes sublinha, durante o seu testemunho, que as cidades são uma construção colectiva e a ideia de que o futuro da Baixa não passa apenas pela intervenção do poder local é repetida várias vezes ao longo do filme.
«As pessoas gostam de se ouvir falando de um assunto de que elas gostam e a Baixa, efectivamente, as pessoas são muito apaixonadas por este espaço. Todos tinham uma relação afectiva muito forte. Agora, ao mesmo tempo que as pessoas são apaixonadas, elas estão muito decepcionadas com o que está acontecendo. Sobretudo as pessoas que eram trazidas para cá quando eram crianças, e tinham uma imagem da Baixa efervescente, e hoje vêem uma Baixa cheia de moscas, abandonada», atira o realizador do projecto.
O vídeo documental com 1h14 de duração foi exibido na Loja Zero e, mais recentemente, na Loja Um, novo espaço ocupada na Rua Adelino Veiga, como forma de demonstrar o potencial de vitalidade da zona histórica. Esteve aberto de 16 de Julho até 1 de Setembro, com actividade regular, desde oficinas a exposições e exibição de filmes. Nelson conta que a projecção pública deste vídeo zero fez bastante sucesso porque «o cinema tem esse poder de fazer reflectir mais a fundo sobre as coisas». Mas e o seu depoimento, se se tivesse sentado do outro lado da câmara, qual seria?
«Que poderia ser feito muita coisa melhor ao nível da comunicação, da qualidade dos conteúdos, eventos a acontecer de forma mais efectiva, mas é preciso recursos. Esta cidade tem um potencial absurdo. Tem tudo para acontecer e está acontecendo. Na cidade onde vivo, o Rio de Janeiro, há uma distância maior entre as pessoas e estando aqui recuperei o meu lado mais sociável. Moro aqui pertinho da Baixa e quero continuar. Outra coisa bonita aqui é o céu. O céu de Coimbra é único. Coimbra traz as melhores coisas que estão dentro de mim.»
Lista de intervenientes no vídeo:
Alex Lima (músico)
Ana Parada da Costa (historiadora)
Assunção Ataíde (presidente da APBC)
Carlos Antunes (diretor-geral do Anozero Bienal de Coimbra)
Clara Spencer (mestranda em sociologia)
Cristiane Pereira (educadora)
Eduardo Costa Campos (gestor de projetos)
Eduardo José Silvestre (bancário reformado)
Else Denninghoff Stelling (gestora hoteleira)
Emílio Torrão (presidente da Comunidade Intermunicipal de Coimbra / Presidente da Câmara Municipal de Montemor-o-Velho)
Filipa Queiroz (jornalista)
João Paulo Barbosa de Melo (economista)
José Madeira (gestor hoteleiro; presidente da delegação Coimbra da AHRESP – Associação da Hotelaria, Restauração e similares de Portugal
José Manuel Silva (presidente da Câmara Municipal de Coimbra)
Lu Lessa Ventarola (artista visual)
Manuel Bragança (gestor)
Robert Wagner (empresário)
Ruy Alberto Sarno (arquiteto e músico)
Sandra Silvestre (animadora comunitária)
Sofia Martinho (educadora de infância)