Se o mundo é um livro em quantas páginas lhe damos a volta? Para quem não lê em tinta a viagem pode ser bem mais curta: na Biblioteca Municipal de Coimbra (BMC) mede-se em pouco mais de mil obras em braille e 600 audiolivros digitais, muitos lidos por voluntários que estão num ponto de paragem. O serviço de gravação de livros encontra-se suspenso desde 2020 e está a fazer falta a uma comunidade de leitores ávida por novos títulos e que se espalha por todo o país.

José Ricardo Melo, contabilista reformado, acusa-se: «Sou super glutão». A «gulodice por leituras» e informação vem de trás (Cosmos, de Carl Sagan, foi o último livro que comprou antes de cegar) e ataca nas frentes nas frentes possíveis. «Áudio, braille, centenas de podcasts, revistas, livros, cassetes, tudo», enumera. Serve-se também de programas de leitura de ecrã e do acervo das principais bibliotecas nacionais. Mas nada faz as vezes do som com histórias que era bordado no pequeno, discreto e agora desactivado estúdio da BMC. «Embora haja alternativas e até dêem nomes às leitoras digitais, é outra coisa: sei que é uma pessoa que está ali. Deliciava-me. Tínhamos leitores e uma edição espectaculares. Aceitavam sugestões e rectificavam os erros. O Porto tem mais cabines [de gravação], mais funcionários, mas faz erros do arco da velha: Jorge Luis Borges, por exemplo, mal se ouve. Lisboa é a mesma coisa. E aqui o Zé Ricardo fica danado». Mais que isso. Tal como outros leitores, José Ricardo Melo tem vindo a bater o pé pela reactivação do estúdio de Coimbra e por «um serviço em condições, como já houve».
O antes e depois faz-se com um nome: José Adelino Guerra, activista pela inclusão e acessibilidade das pessoas com cegueira, com forte empenho na área cultural, fundador da ACAPO [Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal] e criador, em 1986, do serviço da biblioteca municipal para pessoas cegas ou com baixa visão, então chamado Sala de Braille. Faleceu em 2012, à saída do trabalho, num acidente evitável.
Adelino Guerra estava cheio de projectos: dirigia a novíssima publicação Jardim da Sereia – Revista Inclusiva de Divulgação Tiflocultural, gratuita e publicada nos três formatos (digital, braille e áudio) e fechava o primeiro ano de vida do estúdio de gravação com uma produção regular de audiolivros, alargando a muito limitada oferta de literatura a pessoas com deficiência visual. De acordo com a União Mundial de Cegos, menos de 10% das obras publicadas são produzidas em formatos alternativos.
Selo de qualidade
O estúdio da biblioteca municipal foi construído na sequência da candidatura a um concurso da Fundação Calouste Gulbenkian de promoção da leitura. Em 2011 chegou o Ano Europeu do Voluntariado e Cidadania Activa e com ele os primeiros voluntários convocados por Adelino Guerra. Até à suspensão do serviço, duas dezenas de pessoas deram voz a cerca de três centenas de obras, à medida de duas disponibilidades – a dos locutores/leitores e de Emanuel Laça, técnico da câmara. Durante nove anos, foi ele o sonoplasta: gravou, cortou e editou um sem-fim de horas de leituras em voz alta, conseguindo manter a produção de audiolivros até ficar de baixa médica.

O trabalho escapou, no entanto, às celebrações e homenagens deste ano do Dia Mundial do Braille e Maria José Pessoa, professora e leitora voluntária, reagiu com uma carta à imprensa local e que motivou esta reportagem. «O Dr. Guerra foi um herói, mas, para mim, o Emanuel também é: continuou o trabalho, sozinho, com todo o gosto. Estava cansado, mas apaixonadíssimo pelo fazia», destaca, renovando as expectativas de que o estúdio volte a ser usado. «Gostava que o serviço levasse uma transfusão sanguínea e melhorasse toda a sua capacidade. São duas salas pequeninas, mas onde se pode fazer muita coisa, desde que haja organização, vontade e investimento», diz. «O serviço tem de retomar e com o Emanuel», reforça Maria da Graça Pericão, autora e antiga responsável na Biblioteca Geral da Universidade, que também emprestou voz a mais de uma dezena de livros.
Porquê Emanuel Laça? «Uma vez, uma voluntária estava a ler e o Emanuel, já quase completamente cego, disse que a senhora tinha placa. Reconhece pequenas imperfeições que a mim passam completamente ao lado. Tem uma grande acuidade acústica, não só durante a gravação, como no tratamento técnico, na depuração. Os nossos audiolivros primam pela qualidade – mérito não só de quem fazia a gravação, mas também dos nossos voluntários. E isso é reconhecido pelos nossos leitores», refere António Fresco, actual responsável pelo serviço de leitura para pessoas com deficiência visual da BMC, a par de Adosinda Vinhas.

Os audiolivros são enviados para todo o país em formato digital (mp3) e existem também em CD, distribuídos de forma gratuita e por via postal pelos utilizadores credenciados do serviço, pessoas com cegueira ou baixa visão e que fizeram prova disso. Na BMC contam-se 260 leitores inscritos, mas o número de beneficiários é maior – falta somar os que estão registados no arquivo em papel, com nome e morada nos cartões dos CTT com a indicação «cecograma», o serviço gratuito dos correios para pessoas cegas e que assegura também o empréstimo de livros.
O espólio inclui ainda audiolivros em cassetes, cedidas pela Associação dos Deficientes das Forças Armadas e que continuam a ser requisitadas para fora de Coimbra. São cerca de mil títulos à espera da conversão digital. «Temos o equipamento. Faltam pessoas», sinaliza António Fresco.

Quem lê contos acrescenta pontos
À saída da cabine de gravação mantém-se a estante onde os voluntários deixavam as obras que estavam a ler, com as notas de marcação de cada leitura (dia, número das páginas lidas, frase em que pararam) escritas à mão – Maria José Pessoa e Maria da Graça Pericão guardam estes papelinhos como um diário. Um dos livros que ficou a meio continua no estúdio: é da saga Outlander de Diana Gabaldon, lida por outra voluntária, Maria José Alegre. «Tem tido muita procura. Não só pela história, mas também por quem a lê. Os nossos leitores gostam muito desta voz», comenta António Fresco.
«Adorei, adorei. É uma obra muito grande e muito bem lida. Marcou-me muito», confirma Maria Coelho, que prefere ler em braille, embora goste das «duas versões»: pontos e sons. Estudou Direito «por gravação» e não passa um dia sem pegar num livro, sobretudo desde que se aposentou. «Quando não há, peço a gravação. A variedade em áudio começa a ser melhor», reconhece.
Apesar de ser um best-seller, a série de Diana Gabaldon não existe em braille em Portugal e é um dos muitos títulos que chegou aos leitores com cegueira graças ao trabalho da biblioteca municipal e dos voluntários de Coimbra. Uma ideia do esforço: um dos volumes, Cruz de Fogo, tem 1327 páginas e resultou em 71 horas de leitura, sempre pela mesma pessoa e sem contar com o tempo de gravação e edição.

Maria José Pessoa, com longa experiência em teatro, era das que interrompia a leitura muitas vezes. «Tive momentos em que chorei. As descrições que tínhamos de ler, que emoção. O Emanuel dizia-me: “Pronto, Mizé, é altura de parar”», ilustra. Aconteceu com A Sétima Porta, de Richard Zimmler, o primeiro livro que gravou, sugerido pelo autor.
Mas Maria José Pessoa leu também livros de dietas. «E eu um manual de piscinas», continua Maria da Graça Pericão para dar conta da variedade da oferta e da satisfação que é ler para os outros. «Vinham parar-me às mãos livros que nunca leria. Acabamos por gostar porque sabemos que vai ser útil a alguém. Há um retorno enorme: imaginar a alegria que vamos dar a uma pessoa que, de outra maneira, não teria acesso àquele texto», partilha.
Graça Pericão nunca tinha feito leituras em voz alta, mas beneficiou da experiência no Coro D. Pedro de Cristo e seguiu à risca as indicações: «Cortei completamente com a água no frigorífico e as coisas geladas. Há que saber projectar a voz, ter uma dicção clara e dizer as palavras até ao fim». «Ainda recebi alguns emails com essa chamada de atenção para não comer as sílabas», completa Maria José Pessoa, que fez por ter reacções dos leitores às gravações.

A sondagem informal permitiu também apaziguar o dilema entre uma leitura dramática e outra mais neutra, «para dar a oportunidade a quem ouve de ler à sua maneira». «Gostavam que houvesse interpretação», conclui Maria José Pessoa. Exemplo: «Li Quando Lisboa Tremeu, de Domingos Amaral, que tem personagens fantásticas. Há um padre italiano que anda pela rua a gritar “Vocês são pecadores”. Há uma freira espanhola que ajuda muita gente e há um escocês, cuja mulher falece quando ele está com a amante. E eu tento falar com estas pronúncias todas. E depois há um menino, que perde o cão e a mãe morre-lhe nos braços». Este foi um daqueles casos em que a emoção interrompeu a leitura e Emanuel Laça entrou em campo.
Serviço deve ser retomado
Na biblioteca municipal, adianta António Fresco, há já uma proposta interna para retomar a produção de audiolivros e «foram feitas diligências para serem alocados recursos humanos». O plano é não só reiniciar o serviço de gravação, mas também alargar a oferta, com a chamada de mais voluntários para ajudar a digitalizar livros e dar assistência nas leituras presenciais, permitindo a consulta de obras e documentos que não existem em formatos alternativos, como jornais de época.
A favor do serviço existe, desde 2018, uma plataforma online de partilha de livros para pessoas cegas ou com visão reduzida, que permite saber o que existe, onde existe e como ter acesso. O Repositório Nacional de Objectos em Formatos Alternativos foi lançado pela Biblioteca Nacional e funciona como um catálogo colectivo, aberto à participação de produtores e detentores de recursos em formatos alternativos, como a BMC. O sistema permite poupar esforços e evitar redundâncias. «Não faz sentido estarmos a ler as mesmas obras que os serviços equivalentes», defende António Fresco, na procura de «um melhor ajuste» entre a oferta e a procura.
Na ainda chamada sala de braille, estão pilhas de livros por digitalizar em RTF, um dos padrões que permite a sincronização de áudio e texto. António Fresco, pega na Divina Comédia, de Dante Alighieri: «Faz sentido que muitos clássicos da literatura não estejam disponíveis em formatos alternativos? Todos têm de estar. Este, por exemplo». «Há títulos que escapam. Circunscrevemo-nos às obras que tenham recebido prémios ou em que haja falhas no mercado e vontade dos leitores em os receber. Alguma coisa que façamos é sempre muito pouco face às necessidades», admite.
O Centro Professor Albuquerque e Castro, no Porto, é o único local de produção regular de livros em braille no país. Em 2021, considerado um ano profícuo, foram transcritas 50 obras, como Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez, à venda por 35 euros.
A pedido de Coimbra, o centro produziu também a tetralogia A Amiga Genial, de Elena Ferrante, digitalizada aqui na biblioteca. A transcrição da tinta para o sistema de leitura táctil só do primeiro livro da saga resultou em oito volumes, que por estes dias circulam na sacola azul escura dos correios. Quem está a ler Ferrante? Adelaide Carvalho, que aos 87 anos se assume como leitora inconvertível de braille. «Leio devagar. Gosto de usar as pontas dos dedos e de ler à mesa ou à secretária. Dizem-me que o áudio dá menos trabalho. Pode ser. Mas não é a mesma coisa. A ouvir vou distrair-me. E eu gosto de sentir [o livro]», distingue.

O braille é a forma por excelência de contacto com a língua escrita e é crucial na instrução, sem que as editoras estejam obrigadas a imprimir neste formato os manuais e livros inseridos no programa escolar, como sublinha António Fresco. A BMC acompanha alunos fora de Coimbra e tem vindo a digitalizar as obras recomendadas, pedindo depois a impressão ao Porto. «Foi assim com A Viagem do Elefante, [de José Saramago]. Uma luta que tínhamos com os professores era esta: havia alunas que queriam participar no Concurso Nacional de Leitura e não tinham as obras em braille», aponta.
Todas as terças-feiras a biblioteca divulga um novo título em RTF e «há sempre um grupo de 15 a 20 pessoas que pede logo. Nem espera cinco minutos», refere Adosinda Vinhas, que, entre os telefonemas com leitores, prepara também o envio da obra poética de Manuel Alegre, impressa este ano na biblioteca. O destinatário? José Ricardo Melo, o «super glutão».

«Até nos interrogamos: “Será que lêem?” A verdade é que estão ávidos», atesta António Fresco, que indica uma solução rápida para a «fome de livros». «As obras deviam chegar às bibliotecas também em suporte digital. Existe uma matriz electrónica para cada título; se ela nos chegasse, evitávamos este trabalho [da digitalização] e os nossos leitores teriam milhentos livros para ler todas as semanas», aponta. «É esta a grande luta que as instituições deviam ter, principalmente as que são detentoras do depósito legal [das obras publicadas ou impressas em Portugal], como é o caso desta casa», defende.
Para José Ricardo Melo a medida «é ideal» e devia ser enquadrada numa reforma do serviço. «Falta uma pessoa efectiva, a 100%; as duas que estão são espectaculares e vejo o esforço que fazem. Mas não haverá ninguém que saiba governar tão bem uma secção para cegos como um cego», contrapõe.

Maria Coelho dá-se por satisfeita: só conhece António Fresco e Adosinda Vinhas das conversas por telefone, marcadas pelas indicações do que vai saindo e dicas para próximas leituras. «São impecáveis. Como os nossos clássicos existem em braille e eu gosto de ler tudo é mais fácil. Há sempre. Só se deixar de pedir é que me falta», diz. Adelaide Carvalho também só tem uma exigência: «Têm de ser histórias bonitas, de amor. Eles sabem que não quero guerras, nem política. Aí, desligo».
Já José Ricardo Melo sugere a realização de um inquérito junto dos leitores da secção e deixa o desafio: «Do poder político os cegos deviam exigir muita coisa».