O recreio das 10h vai a meio e centenas de alunos espalham-se pelos pátios, campos de jogos e espaços de convívio da Escola EB 2,3 Martim de Freitas, em Celas. Há conversas, correrias, passes de bola, rodas e piruetas – o burburinho típico de intervalo, mas que para muitos membros da comunidade escolar seria maior, mais saudável e mais seguro se o telemóvel não fosse convidado para a festa. Sentadas nas escadas de um dos blocos, meia dúzia de adolescentes, atiram, quase em coro, um animado «Bom dia, director» a Luís Gonçalves. A imagem oferece duas versões para a mesma história: todas estão de ecrã na mão; todas são capazes de se ligarem ao que está à volta.
«A escola deve levar os estudantes a perceber, de forma autónoma, que têm fora do telemóvel um espaço e pessoas mais interessantes do que aquilo que vêem no ecrã», diz Luís Gonçalves, director do Agrupamento de Escolas Martim de Freitas. Dentro de dias, o professor vai receber uma petição, que soma já mais de 300 assinaturas, a pedir a interdição do uso de telemóveis, tanto nas salas de aula, como no recreio. Não será bem-sucedida, pelo menos para já. «A função da escola é educar. Não se chega à educação pela proibição ou obrigação, além de que não cabe à escola proibir a utilização de um equipamento que foi oferecido pelo encarregado de educação», reage.
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A petição replica em Coimbra o abaixo-assinado de âmbito nacional, que começou a correr em Maio e recolheu mais de 21.800 assinaturas, unidas pelo mesmo objectivo: proteger as crianças de episódios de bullying, travar o acesso a conteúdos nocivos, reduzir a exposição diária a ecrãs, promover o convívio presencial e dar espaço à brincadeira. Até ao final deste mês, é esperado que o Conselho das Escolas emita um parecer sobre este assunto, mas, mesmo sem uma decisão final do Ministério da Educação, são cada vez mais os estabelecimentos de ensino a restringir ao máximo o uso de telemóveis, de norte a sul do país.
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Por cá, há colégios privados que também avançaram este ano para a proibição, mas no ensino público mantém-se a regra geral. «Estamos preocupados com o acesso permanente ao telemóvel e o vício que isso representa. Se entrarem numa escola, o que vão ver são crianças de 10 ou 12 anos em grupo, mas cada uma agarrada ao seu telemóvel. O padrão é este», alerta Catarina Prado e Castro, promotora da petição em Coimbra.
Voltamos ao recreio da Martim de Freitas. Se tivéssemos chegado uns 15 minutos mais tarde, a tempo do intervalo das turmas dos 5º e 6º anos, reconhece Luís Gonçalves, o cenário seria diferente: mais silêncio; mais alunos absortos, de telemóvel na mão. «A situação das crianças mais pequenas é diferente e causa-me mais preocupação. Mas também sabemos que este fenómeno tem uma explicação. Por norma, é na passagem do primeiro para o segundo ciclo que recebem, pela primeira vez, um telemóvel. Estão deslumbrados porque têm um equipamento novo», entende.
O filho de Catarina Prado e Castro, a frequentar o 6º ano, «é o único da turma que não tem telemóvel». «No ano passado, andou a ver pornografia nos telemóveis dos colegas. É chocante. Foi o que me alertou para esta questão», conta.
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Proibir ou educar
No jogo do gato e do rato, a tecnologia e o algoritmo estão sempre um passo à frente de qualquer regra ou controlo. As ferramentas que permitem limitar o acesso à internet e bloquear conteúdos nem sempre são eficazes ou tidas como necessárias pelos encarregados de educação. Este é um dos argumentos que, para os promotores da petição, pesa a favor da proibição do uso de telemóveis em recinto escolar. «Os pais ainda se focam muito nos aspectos positivos dos smartphones, mas esquecem-se que estão a colocar nas mãos de crianças computadores que dão acesso a tudo. Basta dois ou três não terem controlos parentais para a turma inteira assistir a vídeos com conteúdos altamente inapropriados», defende Catarina Prado e Castro. A educação de adultos e crianças para o uso correcto da tecnologia, reforça, «não é suficiente para resolver o problema».
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Já para Luís Gonçalves a abordagem só pode ser pedagógica: «Se proibirmos, quem ensina a não clicar nos links de uma mensagem de phishing? Quem explica que, quando o jogo é gratuito, o preço somos nós? Este é o trabalho que fazemos nas disciplinas de Cidadania, Oficina Digital e TIC [Tecnologias da Informação e Comunicação] e só podemos fazê-lo se os telemóveis estiverem presentes».
A estratégia do agrupamento, continua, é garantir que os alunos têm com que se entreter nos intervalos e escolham não tirar o telemóvel do bolso. Está a haver investimento na biblioteca e nos espaços para jogos, contactos com a Federação Portuguesa de Teqball para criar actividades na escola, há novas mesas e bancos a convidar ao convívio, a rede de clubes foi alargada e foram dados passos para que os assistentes operacionais recebam formação e consigam dinamizar os intervalos.
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A recomendação da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) vai, no entanto, bem mais longe: o uso de smartphones nas escolas deve ser proibido quando for prejudicial ao ensino e ao bem-estar dos alunos. E são muitos os sinais a apontar neste sentido. «Não desvalorizo o que diz a UNESCO, nem as preocupações dos encarregados de educação. Eu sei e percebo os perigos. Mas entendo que essa restrição deve ser criada pela oferta de alternativas ao uso do telemóvel» nos tempos livres, conclui Luís Gonçalves.
«Cyberbullying é muito preocupante»
O relatório da UNESCO, «A Tecnologia na Educação: uma ferramenta ao serviço de quem?», divulgado este Verão, conclui que o uso excessivo de ecrãs diminui o desempenho escolar, coloca em risco o bem-estar e a privacidade das crianças, provoca desatenção e potencia comportamentos agressivos. «A questão do cyberbullying é muito preocupante», retoma Catarina Prado e Castro. «Crianças com telemóveis nas mãos significa a captação de cenas que se passam na escola, que há 20 anos morriam ali e que agora, filmados, são humilhações para o resto da vida», problematiza.
No ano lectivo de 2022/2023, a GNR (Guarda Nacional Republicana) registou 140 crimes de bullying e cyberbullying. Os dados foram apresentados a 20 de Outubro, no Dia Mundial de Combate ao Bullying, com as autoridades a referirem que estes actos de violência ocorrem fora da visão dos adultos e estão a ganhar novos contornos nas redes sociais.
«Através do telemóvel, o anonimato é facilitado, permitindo aos agressores assediar, ameaçar ou difamar as vítimas sem medo de represálias. O cyberbullying pode acontecer em qualquer momento e em qualquer lugar. Podem captar imagens, manipulá-las e divulgar mensagens, fotos ou vídeos humilhantes. A natureza viral das redes sociais amplifica enormemente o impacto do bullying», observa Marina Cunha, psicóloga, especialista em intervenções com crianças e adolescentes, e terapias cognitivo-comportamentais.
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A perda de competências emocionais, de socialização e de comunicação são alguns dos «sinais que não podemos ignorar em como o uso de telemóveis está a deixar rastos negativos». «Há competências sociais que devem ser desenvolvidas aos 10/12 anos e só se aprendem fazendo, vivendo as coisas: como responder a um amigo, estabelecer contacto visual, iniciar uma conversa ou receber um elogio», explica Marina Cunha. Quando as crianças são mais ansiosas ou têm mais dificuldades na interacção social a tendência pode ser usar o telemóvel para «recusar estas situações que são ameaçadoras para eles». «A forma como utilizam o telemóvel é um factor de manutenção e agravamento das dificuldades que já têm», adita.
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Ouvir os alunos
Os estudos mostram também que as crianças ou jovens mais dependentes do uso do telemóvel «apresentam níveis mais elevados de ansiedade, stress, sintomas depressivos, isolamento e depressão».
A UNESCO também sinaliza estes riscos e conclui ainda que, ao nível cognitivo, o impacto negativo na aprendizagem pode ser significativo: a simples proximidade a um telemóvel é capaz de provocar distracção, com especialistas a indicar que um aluno pode demorar 20 minutos para voltar a ficar concentrado na tarefa que estava a desempenhar antes de cair uma notificação no ecrã.
Os dados fornecidos pelo PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), refere ainda a UNESCO, sugerem uma correlação negativa entre o uso excessivo da tecnologia e o desempenho académico.
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Apesar do diagnóstico, Marina Cunha também se afasta da ideia de proibição. «O momento é para todos pensarmos sobre esta questão. A atitude deve ser de educação, de repensar como usar esta ferramenta, sem ficarmos vítimas, nem reféns», diz. Tal como Luís Gonçalves, a psicóloga acredita que a resposta mais eficaz é a que sair dos alunos. «A malta nova é capaz de gerar soluções e limites de utilização aos telemóveis na escola, se forem motivados para isso. Temos de os ouvir», destaca. Neste debate, ninguém pode andar distraído.
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