Muito já se debateu sobre as alterações arbóreas da cidade que se iniciou nas semanas transitórias de Setembro para Outubro. O abate de mais de uma centena de árvores, especialmente notório na malha urbana de Coimbra, fez-se sentir de imediato até porque foi acompanhado por uma onda intensa de calor, provando que o rescaldo da razia vai além da estética urbana.
«A Tenente Valadim é a [rua] que mais me preocupa, porque toda essa zona é uma das mais quentes da cidade e tenho dúvidas de que fosse necessário deitar algumas das árvores abaixo.» Palavras de António Rochette que pontuam preocupação, mas não negam o problema do estado sanitário do arbóreo de Coimbra, que há muito era equacionado em conversas informais: «A solução ideal seria a do abate de algumas árvores enquanto se promovia o crescimento de outras novas.»

«No entanto, isto devia ter sido feito ao longo do tempo, pois as árvores que foram plantadas numa determinada rua nos anos 30 ou 50 do século passado têm todas a mesma idade», remata o professor e investigador da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Desde 2017, Rochette tem publicado e orientado estudos académicos sobre os variados fenómenos microclimáticos em Coimbra e a respectiva simbiose dos espaços verdes e azuis da cidade com a sua malhas urbana.
Um trabalho que advém de uma perspectiva pedagógica, actualmente a ser exposto à comunidade científica e em simultâneo para a opinião pública, de modo a fomentar um pensamento global na lógica de começar a transformar o espaço da cidade. «Não é tanto o número de árvores que se plantam, é muito mais a forma como as plantamos», atenta-nos Rochette, sublinhando que «um plano de arborização correcto com todos os interfaces tem de ser previsto em função de várias nuances», enunciando o clima, a topografia e a tipologia das ruas como exemplos fulcrais.
Arquipélagos microclimáticos
Muitos factores condicionam ocorrências climáticas na cidade, como as ilhas de calor urbano (ICU), «espaços que, após o pôr do sol, libertam o calor acumulado durante o dia por parte do edificado, levando a uma diferença de temperatura entre os espaços verdes e o sector urbano». Rochette salienta que o fenómeno «acontece em praticamente todas as cidades de maior dimensão e demonstra quão importante é o arbóreo para fazer uma regulação climática dentro dos espaços urbanos».
Os estudos académicos indicam que as ondas de calor sucessivas que Coimbra tem vindo a sofrer podem de facto ser apaziguadas pelas chamadas ilhas de sombra ou de frescura, fundamentais para reduzir o impacto de todo o calor provocado pelas alterações climáticas, numa lógica de regulação climática urbana. «Aquilo que temos estado a verificar é que uma árvore isolada ou com um sistema linear de árvores nas ruas acabam por não ter o mesmo impacto que têm estas ilhas de sombra.»
«É preferível ter mais espaços verdes de dimensão média ou mesmo pequena, sob a forma de ilha, do que ter grandes espaços. Estes vão ser importantes noutros contextos como o da biodiversidade, mas na regulação climática acabam por não ter o peso dessas ilhas.»
António Rochette, professor e investigador da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
Rochette reitera assim a importância fulcral do planeamento dialogado com os cidadãos, pois há elementos a ter em conta como o tempo de crescimento das árvores que «no cenário mais optimista, vai demorar cerca de 15 a 20 anos até ter uma copa que já funcione nessa função de fornecer sombra» ou até mesmo a tipologia arbórea mais propícia a tais efeitos. Realça o exemplo das caducifólias, «árvores de folha caduca que nos permitem a chegada de energia solar quando é mais precisa durante o inverno e que nos protegem dessa mesma energia no verão».
Curadoria científica e citadina
O desafio de retórica pode oportunamente ser ultrapassado através da Citizeen, uma aplicação desenvolvida pela OWL, no âmbito do projeto europeu Pharaon, para já apenas disponível para smartphones Android. Actualmente em fase de protótipo, e à procura de voluntários para testar, o aplicativo permite a qualquer cidadão georreferenciar e partilhar espécies de biodiversidade e locais de interesse nos espaços verdes em qualquer cidade do mundo, com os primeiros testes em campo a decorrer em Coimbra – nomeadamente, na zona ribeira do Vale das Flores – durante os meses de Novembro e Dezembro deste ano, assim como em Março e Abril de 2024.

Experimentámos a aplicação, cuja curadoria e verificação de todos os conteúdos é feita em conjunto com cientistas do centro de investigação MARE-UC, e verificámos que podem ser consultados no separador «Natureza». Já no separador «Notícias» encontram-se todas as publicações feitas por cidadãos comuns. A aplicação potencia assim a participação cívica ao permitir mapear valências e apontar problemas nos espaços públicos, mas Pedro Resende, da OWL e participante da Geração Coolectiva, afirma que não foi desenvolvida para ser uma mera rede social para policiar a biodiversidade.
«Queremos criar uma comunidade de cocriação de conteúdos, juntando a visão holística dos dados satélite às publicações feitas no local pelos cidadãos. Interessa-nos que as pessoas aprendam a dar valor ao que de bom existe e ao que pode ser melhorado.»
Pedro Resende, co-fundador da OWL
Relativamente à rearborização, o responsável pela Citizeen esclarece que não tira crédito aos planos municipais em decurso, mas denota que a aplicação permite «mapear precisamente essas variações, no que diz respeito ao índice de vegetação ou da capacidade fotossintética das futuras árvores». Resende adianta que a aplicação, ao informar sobre o conforto térmico nos espaços, se presta a ser uma boa ferramenta para descobrir os chamados refúgios climáticos exteriores, onde os cidadãos se podem proteger durante as ondas de calor.

Mosaicos a decifrar
Embora os refúgios sejam geralmente populares na sua vertente de espaços fechados com ar condicionado (centros comerciais, bibliotecas, etc), Coimbra beneficia de um vasto catálogo de opções ao ar livre, como o Jardim da Sereia, a Mata Nacional do Choupal ou o Jardim Botânico. Após listar esses exemplos, Rochette esclarece-nos que muitas dessas grandes áreas se desdobram em mosaicos temperaturais, sublinhando o caso do Parque Manuel Braga e Parque Verde do Mondego.
«O Parque Verde faz a continuação do Manuel Braga com um arbóreo de grande dimensão. Depois temos um sector com pequenas ilhas de sombra na zona por detrás dos restaurantes, desde o urso até ao Pavilhão de Portugal. Se formos para o outro lado, encontramos uma mata de choupos entre a Piscina e o Exploratório que é muito interessante, seguida de uma zona com algumas árvores mas sem grande vegetação e, por fim, o Parque da Canção.» A descrição do docente culmina na conclusão de «só esta zona mostra claramente que há sectores distintos com diferenças significativas de temperaturas e humidade».

Nessa especificidade que a maioria dos cidadãos desconhece é que se valoriza ainda mais a Citizeen, desenhada para que as pessoas ganhem consciência dos espaços verdes e azuis geralmente esquecidos, mas também com a sua importância. «Existe muita biodiversidade para descobrir e muitos espaços para os cidadãos conviverem com a natureza», remata Resende, acrescentando que, mediante essa percepção comunitária, «a criação de futuros novos espaços para a cultura e actividade urbana é possível e compatível com a existência da natureza e da biodiversidade».
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