Às vezes, tornamo-nos guias de turismo quase sem querer, um ofício do qual não temos como escapar quando se trata da visita de amigos ou familiares e pelo qual não somos remunerados.
De vários roteiros que já inventámos, há um que é preferido e foi feito à medida para uma amiga que só tinha um dia de passeio em Coimbra e queria homenagear o protagonismo de mulheres nas suas trajetórias individuais e lutas coletivas. Rabiscámos no mapa da cidade uma espécie de ligue-os-pontos pelas ruas estreitas, à procura dos recantos repletos de histórias que esperam ser contadas.
Queríamos um roteiro que quebrasse alguns muros do esquecimento, uma espécie de caminhada especial para tornar visível a voz de algumas mulheres na construção da memória feminina.
Recebemos a amiga na Estação de Coimbra e de lá atravessamos a ponte sobre o Mondego. No caminho, explicámos que tínhamos escolhido 4 nomes: Isabel de Aragão, Vataça Lascaris, Domitila Carvalho e América Monteiro, e que percorreríamos as ruas coimbrãs para descobrir mais sobre este quarteto marcante e seu empenho na transformação social e poder revolucionário.
Reinar para servir
Nosso roteiro começou no mosteiro de Santa Clara-a-Nova. É lá que está o antigo túmulo de D. Isabel de Aragão e o túmulo de prata e cristal com o corpo incorrupto da Rainha Santa. No coro baixo da igreja é possível conhecer o seu túmulo primitivo, construído em 1330, que as freiras Clarissas trouxeram do antigo Mosteiro de Santa Clara, quando foram obrigadas a abandoná-lo por causa das inundações do Mondego. Entretanto, é no retábulo da capela-mor da Igreja que se encontra a urna de prata e cristal, onde é venerado o corpo de D. Isabel.
Em Coimbra, aplica-se a D. Isabel de Aragão, com toda propriedade, a expressão reinar para servir. O selo maior da sua passagem por este mundo foi o amor ao próximo. Paralelamente, revelou-se uma notável mulher de cultura, diplomata hábil, uma rainha inteligente. Falar da Rainha Santa é falar de uma mulher extraordinária, nascida em 1270, provavelmente em Saragoça, que não se limitou às obras piedosas e exerceu funções de interveniente política. Até seu marido, D. Dinis, a louvou numa Canção de Amor dizendo: Érades boa para Rei. D. Isabel de Aragão tinha o perfil perfeito para exercer o poder, nomeadamente o poder régio. Com o seu financiamento, nasceram os primeiros estabelecimentos de apoio aos pobres, aos leprosos, aos velhos, aos órfãos e às prostitutas.
As padeiras
De Santa Clara voltamos a atravessar o rio Mondego rumo à igreja da Sé Velha, bem no coração da Alta da cidade. Porém, alonguei um pouco o caminho para percorrer, na Baixa, a Rua das Padeiras, um lugar carregado de significado.
Quando nos propusemos a desenhar um circuito feminino, não poderíamos deixar de fora a memória daquela mulher pertencente às camadas laboriosas da população, enquadrada nos setores de produção artesanal e do pequeno comércio.
A Rua das Padeiras tem este nome desde a Idade Média e, embora hoje albergue muitas lojas e quase nenhum pão, nos ensina a enorme valia dos grupos femininos na economia: a atividade dessas mulheres era essencial. Caminhando pela Rua das Padeiras reverenciamos as chumaceiras, as tecedeiras de cintas, as cirieiras, as almoinheiras, as tendeiras e tantas outras trabalhadoras.
Única na Sé Velha
Fundada durante o reinado de D. Afonso Henriques, a Sé Velha de Coimbra representa uma jóia do Românico português. É a única catedral portuguesa construída na época da Reconquista, cuja estrutura se mantém intacta. Convido minha amiga para entrar e descobrir, em meio aos vários túmulos masculinos, onde está sepultada D. Vataça Lascaris, a única mulher que descansa sob as centenárias pedras da catedral.
Vataça foi uma dama da família real do Império de Niceia, que acompanhou D. Isabel de Aragão e o rei D. Dinis na corte portuguesa. Esta princesa Bizantina, é tida como uma mulher dotada de grande cultura e aptidões diplomáticas, que usou no apaziguamento político. Hoje, Vataça poderia muito bem ser a Secretária-Geral das Nações Unidas, pela sua inteligência para reflexão e previsão, pelo conhecimento da sociedade, suas vitórias no jogo político e na pacificação do mundo peninsular.
Caminhamos até ao túmulo de D. Vataça, no fundo do templo, à esquerda. Enquanto estivemos ali, pensamos sobre quantas mulheres como ela se encontram representadas desta maneira, isto é, se tornam presentes, mesmo quando na ausência (o que é em si muito revelador também) em um lugar onde apenas homens receberam tal homenagem.
Domitilas e Américas
Ao sair da Sé Velha, continuamos a subida para nosso último destino: a Universidade de Coimbra. Durante o percurso, presenteámos a amiga com uma reprodução da fotografia de Domitila Hormizinda Miranda de Carvalho (na foto) e começámos a contar-lhe a sua história.
Na linha do tempo da Universidade, Domitila é um ponto incontornável. Pioneira num ensino predominantemente masculino, ela representa a emancipação científica e seu exemplo encorajou muitas outras a procurarem instrução para além da escolaridade básica. Foi ela quem começou a escalada para uma progressiva feminização no ensino superior em Portugal. Em 1892, Domitila se fez estudante em Coimbra, tornando-se a primeira mulher a ingressar numa universidade; ela tinha 20 anos e a Universidade 602. A pioneira, não só frequentou os cursos de Matemática e Filosofia, que concluiu com distinção, como de seguida ingressou em Medicina, e durante quatro anos foi a única aluna em Coimbra. O Reitor até ditou que ela deveria trajar sempre negro, com chapéu discreto e de forma sóbria, para não levantar mais poeira.
Enquanto Domitila estudava em Coimbra, no Brasil nascia outra precursora. Em 20 de julho de 1898, veio ao mundo a menina América do Sul Fontes Monteiro, em São Luís do Maranhão. Foi o nordeste brasileiro quem presenteou a Universidade de Coimbra com a primeira estudante vinda do Brasil, corria o ano de 1917. América tinha apenas 19 anos quando foi admitida na Faculdade de Letras. Enquanto caminhávamos, dissemos à amiga para prestar atenção às estudantes que passavam e que, em cada uma delas, projetasse uma Domitila ou uma América.
Quando finalmente chegamos na Porta Férrea, dissemos-lhe que o último ponto do roteiro era sentir esta força feminina que irradia de tantas mulheres, pra lá e pra cá, com seus livros e cadernos. Despedimo-nos num abraço emocionado e já apressado mas ainda deu tempo de cantarmos juntas o verso bonito daquela ciranda: Companheira me ajuda, que eu não posso andar só, eu sozinha ando bem, mas com você ando melhor.
Texto e fotos: Vilma Reis
Foto: Domitila Hormizinda Miranda de Carvalho (SD); Anuário 1917, Biblioteca Geral Universidade de Coimbra