Oitenta e oito anos separam Dӧrchen Richter e Gabriel Mac. Dӧrchen nasceu um menino, em Berlim, na Alemanha, e foi a primeira pessoa a realizar uma cirurgia para mudar de sexo, em 1931. A responsável foi a equipa do médico Magnus Hirschfeld, diretor do primeiro instituto de pesquisa moderno para a saúde transgénero. Gabriel, que nasceu menina em Cleveland, Ohio, nos Estados Unidos da América, é hoje um escritor e jornalista. Estes 88 anos separam o dia em que os nazis destruíram o Institut für Sexualwissenchaft e mataram Dӧrchen e o dia em que a revista New York publicou em sua capa (e na deste artigo) uma fotografia de Gabriel a evidenciar a sua faloplastia, a cirurgia de construção de um pénis.
Dentro deste intervalo temporal mora a história da cirurgia de mudança de sexo (ou ainda cirurgia de afirmação de género), um procedimento que altera a aparência física e as características sexuais de uma pessoa transgénero para que se assemelhe àquelas associadas ao género identificado e alivie a disforia de género, que é o desconforto emocional sentido por alguém que manifesta uma incongruência entre o seu género vivenciado e o género que lhe foi atribuído no nascimento. A disforia é esse conflito interno contínuo entre identidade de género e identidade sexual. Nem todas as pessoas que são transexuais têm necessariamente a disforia de género, a disforia implica que haja um sofrimento psicológico e uma não aceitação do seu corpo relativamente à forma como se sentem.

Coimbra abriu a porta portuguesa desta história em 2011, quando um grupo de especialistas fundou a URGUS: a Unidade Reconstrutiva Génito-Urinária e Sexual do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra que, de forma pioneira no país, constituiu uma unidade de referência nacional para o acompanhamento dos utentes no processo de reatribuição sexual, tendo competência técnica e científica para acompanhamento multidisciplinar em todo o processo. «No Sistema Nacional de Saúde (SNS) não havia resposta em nenhum dos centros de referência de medicina no país e perante as queixas das pessoas atendidas na consulta de sexologia que pediam soluções cirúrgicas para a disforia de género, era importante que se estudassem formas de minorar as insuficiências do SNS e conseguir uma solução credível e suficientemente competente para uma população já sujeita a fortes cargas emocionais» , esclarece António Reis Marques, psiquiatra em Coimbra, o fundador da URGUS e primeiro coordenador da unidade.
A pioneira URGUS de Coimbra
Reis Marques explica que na génese da unidade estão as primeiras consultas de sexologia dos CHUC, em finais dos anos oitenta, que se distinguiam pelo prestígio e capacidade científica e colaboração de outros serviços. No fim dos anos noventa, o ambiente cultural (e a dispersão de tabus) contribuiu para o aumento dos pedidos de ajuda e foi criada uma equipa com as competências necessárias. Depois de muitas discussões e reuniões entre pares, e alguns estágios em centros de referência estrangeiros, formou-se a URGUS: «Desde o início, eu próprio e a unidade, fomos atacados por falsas notícias oriundas de outros cirurgiões de fora de Coimbra. Diziam que não tínhamos competências do foro cirúrgico, que era um perigo alguém sujeitar-se a estes profissionais… a nossa perseverança manteve o projeto. Foi muito difícil aguentar a pressão da imprensa que exibia notícias desprestigiantes. Apresentamos queixas em tribunais e na Ordem dos Médicos para se repor a verdade e a justiça. Estava muito em jogo, os críticos representavam a saúde privada e, com alguma manipulação dos órgãos de comunicação social, pretendiam desacreditar os profissionais do CHUC», conta o psiquiatra. Os cães ladram e a caravana passa, como diziam os árabes.

Não foi por acaso que a URGUS foi pensada por um psiquiatra, médico cuja especialidade tem como campo de atuação os conteúdos referentes à saúde mental e a todos os transtornos consequentes ao mal-estar das pessoas, nas vivências que sentem ao longo do seu ciclo vital e da sua experienciação nos vários contextos de vida. Reis Marques deixa bem vincado que, na sexualidade, os aspectos emocionais e vivenciais são muito importantes: «Na visão histórica da medicina foram sempre os psiquiatras a terem ao seu cuidado o estudo dos aspectos da normalidade, bem como a terapêutica das anomalias na sexualidade, mas nunca dispensando o trabalho colaborativo de todos os profissionais que têm na sua praxis ligações ao desempenho sexual. Todos temos a noção que uma vida sexual satisfatória é fonte de bem estar, dando aos cidadãos uma maior tranquilidade e disponibilidade para enfrentar os problemas da vida».
Pelo menos quatro anos
Susana Pinheiro é cirurgiã plástica e atual coordenadora da URGUS. Faz parte da equipa desde o primeiro momento e é testemunha do crescimento exponencial das pessoas que recorrem à unidade. As consultas de sexologia são a porta de entrada da unidade. Dentro da sexologia estão a psiquiatria e a psicologia; faz parte ainda da base da URGUS a endocrinologia; ginecologia; urologia; cirurgia plástica. Outras unidades também colaboram: o serviço de otorrino para tratar de cordas vocais; o serviço de cirurgia geral quando é preciso fazer a vaginoplastia com intestino; o serviço de reprodução humana para a preservação de fertilidade. Também os pedopsiquiátras e endocrinologistas pediátricos do Hospital Pediátrico colaboram. A unidade não opera ninguém com menos de 18 anos, mas é crescente o número de pedidos para iniciar o tratamento de disforia de género em jovens.

A seguir às consultas de sexologia (que demoram pelo menos dois anos), a unidade pede que o parecer de disforia de género seja avaliado por dois centros independentes. Chegado a esse ponto, e se for para continuar o processo – porque há pessoas que só com este acompanhamento psicológico ficam bem com elas próprias e conseguem gerir a sua vida sem tratamento hormonal nem cirúrgico -, seguem para a consulta de endocrinologia, onde é feito um rastreio das condições médicas necessárias para que se avance ao tratamento hormonal. E, mais uma vez, se quiserem seguir com a cirurgia, que só é feita após o tratamento hormonal de pelo menos um ano, pedem a consulta de cirurgia plástica. Estas cirurgias são feitas no bloco central do CHUC todas as sextas-feiras do mês excepto uma. O processo todo, desde a primeira consulta de sexologia até à finalização, demora cerca de 4 anos.
Susana é hoje quem costura todas as pontas da unidade, explica todas as fases do tratamento e responde aos inúmeros questionamentos sobre a lista de espera: «Tem havido muita pressão da sociedade para que este tempo de espera diminua, nós já reportamos o problema ao Ministério da Saúde, mas não temos como aumentar a produtividade porque não temos pessoas. Fazemos um esforço enorme para conseguir dar continuidade a este projeto… sei que para quem está na lista de espera é um desespero, e eu compreendo a frustração desses utentes. A pressão aumenta e a informação é distorcida. Já nos acusaram de desleixo, de falta de vontade e até transfobia! Temos limitações nos profissionais de saúde e uma procura cada vez maior, tínhamos tudo mais ou menos controlado antes da pandemia mas a covid-19 nos paralisou por um ano e meio, foram 18 meses sem operar ninguém. Somos os únicos do país a funcionar em pleno e eu acho que isso é uma questão política que os nossos governantes terão que resolver, nós não conseguimos fazer mais do que aquilo que estamos a fazer e fazemo-lo com muita dedicação», desabafa.
Fora da caixa
O urologista Paulo Azinhais, membro da equipa URGUS há dez anos, reforça a importância das consultas de sexologia para atestar a disforia de género e descartar outras condições: «Apregoa-se que esta fase inicial é uma perda de tempo e que se a pessoa deseja avançar para a cirurgia, deveria avançar, mas não pode ser assim, para que não se cometam erros. Há situações de índole patológica que podem ser confundidas com a disforia, como parafilias (interesses sexuais invulgares) e até esquizofrenias, é muito importante descartar algum problema de saúde mental que necessite de ser tratado», explica o urologista. A necessidade da avaliação nas consultas de sexologia, ao longo de várias sessões, é para dar a certeza que é uma mente sã a tomar esta decisão irreversível.

Azinhais conta que o assusta encontrar muitos estudantes de Medicina que não estão a receber formação neste processo: «Não há nenhuma cadeira de Medicina que fale sobre disforia de género, é uma enorme lacuna e isso também cria transfobia, o preconceito tem a ver com o desconhecido. Esta é uma área onde urgentemente é preciso formar profissionais que saibam lidar com estes casos e entender as pessoas trans. Aqui mesmo em Coimbra a sociedade médica ainda nos pergunta porque é que temos esta unidade e porque nos dedicamos a isto… ainda tantos que precisam sair para fora da caixa», confidencia o especialista.
11 de Agosto
Sam Martins tem 26 anos, estuda Jornalismo e Comunicação em Coimbra, trabalha na área da restauração e tem marcada a sua primeira consulta para a transição: 11 de Agosto. Quer fazer tratamento hormonal. Considera-se uma pessoa não-binária e «definitivamente» quer mudar o nome de registo: «Por volta dos 13 já havia em mim muitas dúvidas e isso foi se acentuando. Mas apenas há dois anos assumi mesmo a minha não binariedade. A minha família não fala muito sobre isso, tentam evitar o assunto, ainda lhes é difícil gerir a situação. Tratam-me pelo dead name e fazem muita troca de género. Esta consulta será o meu primeiro passo. Quero fazer a mastectomia, mas não a operação para ter um pénis, esse nunca foi o meu objetivo. Apesar de tudo, sou feliz, é o caminho que escolhi e já fiz um enorme progresso», revela.

Além de Sam Martins, pedimos depoimentos a seis pessoas transexuais em Coimbra, mas ninguém quis conceder entrevista. Também entramos em contacto com as associações Rede Ex Aequo, PATH – Plataforma Anti Transfobia e Homofobia de Coimbra e a Associação Anémona e não obtivemos resposta.
A diversidade de género não é nova, mas muitas histórias foram escondidas e apagadas por séculos. Há muito tempo que a população trans é empurrada para as margens da sociedade e infelizmente cresce a violência contra a comunidade, principalmente contra as pessoas trans femininas. A novidade é que para cada Dӧrchen Richter veio um Gabriel Mac. Pessoas não binárias estão aqui, são reais e ocupam todos os lugares. Não passam pelo árduo processo de transição para se encaixar na categoria de mulher ou de homem – fazem-no porque merecem viver em um corpo que as faça sentirem-se pessoas felizes, uma prova do arco-íris eclético da diversidade humana.