A Rota Carmelita é um Caminho de Fátima no território do Centro de Portugal, entre Coimbra e o Santuário de Fátima, que passa pelos concelhos de Coimbra, Condeixa-a-Nova, Penela, Ansião, Alvaiázere e Ourém. Para lá da dimensão religiosa, esta rota apresenta-se como uma proposta de descoberta do território: a riqueza natural da fauna e flora, as serranias e os cursos de água atravessados, as capelas, o contacto com as gentes, os espaços histórico-patrimoniais, os comes e bebes ou o saber-fazer tradicional que ainda prima por estas bandas.
Trata-se de um itinerário temático inspirado na vida e na obra da Irmã Lúcia, uma das três crianças videntes de Fátima, que em 1947 ingressou no Carmelo de Santa Teresa em Coimbra e aqui viveu até à sua morte em 2005. O percurso começa nesse local, junto do memorial da Irmã Lúcia, e tem 111 km, ao longo de muitos caminhos pedonais, que se fazem na companhia da natureza. Este percurso alternativo aos grandes eixos rodoviários oferece ao caminhante ou ciclista troços mais seguros, confortáveis e incomparavelmente mais belos.
Leitor caminhante
Humberto Martins tem 33 anos e é técnico superior na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra e leitor assíduo da Coolectiva. Em 2018, fez uma viagem pelo litoral do país e andou à boleia, de comboio e a pé durante mais de um mês. Contou-nos que quando viaja sozinho, sente liberdade total e que ficamos a conhecer-nos melhor, percebemos como estamos fisicamente e psicologicamente. Depois de um acidente de bicicleta, abandonou os planos de fazer a N2 em duas rodas e lançou-se no desafio de percorrer a Rota Carmelita sem planear praticamente nada. Aliás, só fez uma reserva num albergue e nem sequer a aproveitou porque os pés o levaram para outros lados.
A vontade de partilhar connosco o seu diário de viagem partiu dele e publicamos este relato de viagem genuíno que pode inspirar outras pessoas a explorar o território e a Ultreia (ir mais além) – leiam até ao fim para perceber do que falamos. Uma semana depois desta aventura, os joelhos ainda se queixam mas já recuperou o sono e tem planos para mais viagens.
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1º dia | 26 de Julho
Às 7h da manhã, saio da Conchada, sigo pela baixa de Coimbra vazia e num pulinho estou em Santa a Clara, pelos altos e baixos típicos de Coimbra. Sem dar pelo tempo passar já estou na IC2, a caminho de Condeixa. Páro por minutos para comer algo, sigo logo de seguida para Conímbriga e começo a entrar em sítios com natureza abundante, sossegados e que deslumbram pela simplicidade.
O plano era finalizar o dia no Rabaçal mas Maria e Nicolau encontram-me em Fonte Coberta e fazem-me conhecer o seu espaço na natureza de acolhimento aos peregrinos, chamado Refúgio do Nicolau. Decido ficar e conversar com Maria (de Hong Kong) e Nicolau (da Covilhã), muito hospitaleiros, crentes do Camino, onde se conheceram. Nicolau, alto com barba e cabelo ruivo pediu em Fátima para encontrar uma mulher e Maria apareceu.A sua hospitalidade faz-me ficar a dormir numa tenda neste fabuloso lugar que se revelou uma experiência única, religiosa, num refúgio improvisado na natureza. Eu, Nicolau, Maria e Gaspar, um rapaz francês. Trocámos histórias, rezámos o terço ao ar livre, sinto-me emocionalmente sem palavras para agradecer este acaso.
PS – Ultreia significa vai mais além.
2º dia | 27 de Julho
Saio bem cedo do refúgio do Nicolau, pelas 5h50, inspirado pelo que vi e senti, com muitas frases na minha cabeça. Algum nevoeiro, tempo fresco e um percurso muito bonito, pela natureza e com pouco ruído. Chego a Alvorge para tomar o pequeno-almoço e escrever no diário. Retomo por caminhos quase sempre em terra e rodeados pela natureza até chegar a Ansião para almoçar e descansar um pouco, as pernas já pesam. Decido, uma vez mais, tentar fazer mais quilómetros e chegar a Bofinho.
Não sei como nem porquê, saio do percurso da rota das Carmelitas, apesar de me manter no caminho de Fátima, e quando me dou conta estou em Forrió e na Rua dos Caragos. Passo por subidas íngremes, descidas, muitas montanhas sem fim à vista e não me cruzo com uma única pessoa, apenas um cão me dá algum ânimo. Com muitas cãibras e sem comida, às 18h saco do bolso um pacote de açúcar do café onde almocei em Ansião que foi precioso neste momento. São 20h e continuo a caminhar sem que descubra um alojamento. Às 20h30 quase sem conseguir andar e já de noite, encontro finalmente uma pessoa que me indica um alojamento perto da estação de comboios, a pensão Manalvo, em Caxarias. Neste dia fiz cerca de 55km, fiquei mais perto de Fátima do que pretendia mas com muitas dores musculares. É hora de descansar bem e preparar o dia de amanhã.
3º dia | 28 de Julho
Acordo tarde com dores, tomo o pequeno-almoço na pensão, verifico o percurso restante e tenciono durante a tarde chegar a Fátima. Consigo encontrar, novamente, a Rota das Carmelitas em Caxarias e lá vou com confiança mas com um ritmo mais lento. Sou levado pelas indicações para uma mata de eucaliptos, sinto-me novamente perdido, mas confio no meu instinto e encontro a sinalização. Tem sido uma caminhada, essencialmente, sozinho; em tempos de pandemia existem poucos caminhantes.
Almoço num café junto à igreja de Seiça. No final, levo outro pacotinho de açúcar, pode voltar a ser necessário. Passo Ourém, bebo mais um café para dar energia, chego a São Sebastião quase a desfalecer. No Zambujal melhoro e em Vale da Perra e Alveijar ganho novas forças.
Última fase: entro num caminho de pedras, vegetação quase fechada, sempre em subida, os chamados quilómetros solitários. No topo, a sinalética tão desejada: Fátima. Mais 3 quilómetros, um sprint final com muitas cãibras e chego ao Santuário. Fim da Rota das Carmelitas.
Inspiração na viagem
Vai mais além – Ultreia. Esta palavra define a minha Rota das Carmelitas feita em 3 dias, em vez de 6 etapas. Parti no dia 26 de Julho, um dia depois das comemorações do dia de Santiago Maior e termino a 28 de Julho, às 19h, com o tocar dos sinos de Fátima.
Pelo caminho, acompanharam-me as frases do poeta espanhol António Machado, que disse: Caminhante não há caminho, faz-se o caminho ao andar! E de Dieter Dengler, interpretado por Christian Bale no filme Rescue Down (2006): Esvazia o que está cheio e enche o que está vazio.
Texto introdutório e edição: Joana Pires Araújo
Diário de viagem e fotos: Humberto Martins